terça-feira, 28 de dezembro de 2010







UM SORRISO CONSTANTE


Sempre nos finais de tarde, irrompe pela minha rua, com passos decididos, uma gentil criatura.


Não importa se haja frio ou chuva, ou se o calor escaldante se faça presente. Durante o ano inteiro, sua presença, a cada dia, embala expectativas, alimenta esperanças, chama ao dever, traz notícias àqueles que tanto as esperam. Às vezes, é penoso vê-la carregar volumes expressivos em quantidade e peso, considerando-se sua pequena estatura. Mas lá vai ela... Cuidadosa, diligente, eficiente, atenciosa: seriam essas algumas das qualidades a caracterizá-la.

Na minha rua, já observei, todos a conhecem. Muitos trocam com ela cumprimentos e sorrisos. Em outras ruas, deve repetir-se o mesmo ritual. Muitos, com certeza, também trocarão palavras com essa trabalhadora.

Pessoalmente, conversei pouco com ela. Aliás, bem menos do que gostaria. Se mais soubesse sobre sua pessoa, suas lutas, vitórias, desejos, tenho certeza que mais ainda me surpreenderia positivamente.

Seu local de trabalho são as ruas. Em especial, no meu caso, a minha rua. Parece pouco, mas não é. Trabalhar como uma mensageira, irradiando alegria, não é pouco. É muito nos tempos atuais.

Quando alguém se dirige a ela, ou vice-versa, seu olhar radioso, luminoso, faz par com um sorriso espontâneo, constante, fraterno, que desmonta qualquer carranca. Abrindo-se em sorriso, o que dela se recebe é puro otimismo, alegria, descontração, paixão pelo que faz, paixão pela vida.

Vez por outra, ouço sua voz delicada identificando-se no interfone. Desço feliz, pois compartilharemos alguns minutos de convívio fraterno. Momentos raros nos dias de hoje.

Por isso, estando o ano por terminar, nada melhor do que se desejar um 2011 pleno de encontros mágicos como esse, que transferem boas energias ao semelhante.

Que se multipliquem os sorrisos acolhedores como o de Cleonice, carteira da minha rua: minha carteira. E não importa saber seu nome completo.

Na verdade, Cleonice é única. Seu sorriso é único e constante.

Isso é o que importa.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010








ESTOU TRISTE... ESTOU MUITO TRISTE...


O que pensariam os dois poetas que a tudo assistiram...

No último dia 12 de novembro, em meio a um lugar tradicionalmente reservado à cultura, aconteceram cenas deploráveis. A performance de uma poetisa, ao que parece, acabou por gerar um certo desconforto. O problema é que não se sabe bem a quem incomodava tal apresentação. O fato é que a Brigada Militar apareceu e exigiu a dispersão do grupo.





Que coisa mais lamentável!

Uma praça reservada, nessa época do ano, à cultura e àqueles que a fazem e a promovem, não poderia ter sido maculada por tão desastrada intervenção policial.

Os inúmeros pontos de cultura, no entorno, que compõem tão belo cenário, mereciam outro desfecho menos traumático, qual seja o da prisão de uma poetisa. Foi, no mínimo, um exagero do poder de polícia.

Estou muito triste...

O lado sombrio da praça, aquele por onde perambulam drogados e vendedoras do corpo, ilumina-se uma vez por ano. Circulam, por ali, nesse período, milhares de leitores, centenas de autores, dezenas de palestrantes. Acontece um sem-número de oficinas. A cultura por ali viceja. Milhares de pessoas adentram nas salas, nos museus, percorrendo caminhos que, não fosse pela existência da Feira do Livro, dificilmente seriam visitados durante o restante do ano.

Estou muito triste...

É um lugar próprio para a apresentação de performances. Aliás, deveria existir ali um espaço destacado, sobre um tablado, por exemplo, onde se realizassem tais apresentações a céu aberto, para que o público a elas tivesse total acesso. Dessa maneira, os próprios garis, vez por outra, repousariam a vassoura por instantes, para voar junto com as palavras, imagens e encenações que propiciam uma trégua nesse dia a dia, que anda por demais belicoso.

Estou muito triste...

Sorima, sentada ao lado dos poetas, não vê outra solução a não ser expandir as mais diversas manifestações culturais a todos os visitantes: do menos letrado ao mais intelectual. Tudo em absoluta consonância com o direito de ir e vir de cada cidadão, que pode circular sobre uma praça que é de todos. A menos que esteja a perturbar o sossego alheio, o que não é o caso quando se está promovendo uma apresentação de cunho cultural num lugar dedicado a esse fim.

Daí, talvez, a poetisa, motivo do tumulto, não precise mais gritar que está triste, muito triste.

E Sorima, com certeza, aos pés dos jacarandás floridos, transformará seu nome em Só Rima. Pra combinar, é claro, com o ambiente iluminado pelas letras que fazem morada nessa praça, a cada primavera. Um lugar mágico, encantado, capaz de transformar pedidos e ordens despropositadas em material para novas produções literárias e outras tantas manifestações culturais: isso é a nossa Feira na Praça.




sábado, 25 de setembro de 2010







SALVO-CONDUTO


Pois a Professora Mariazinha, assim tratada, carinhosamente, pelos alunos, vez por outra, descia o morro acompanhada. O guardião era um sujeito mal-encarado, com uma cicatriz no rosto e com a ponta de um trabuco aparecendo sob o casaco, que juntava sua ginga aos passos da professora. Isso era sinal de que o ambiente, naquele dia, não dava pra facilitar. Era largar fora logo.


Mariazinha fazia um meneio com a cabeça, enquanto o indivíduo dizia duas ou três palavras para tranquilizá-la. Ela sabia que a preocupação era por alguma bala perdida ou por algum engraçadinho que viesse tentar importuná-la. Bem de valor material só um relógio e uma carteira sem dinheiro, ou melhor, o suficiente para o ônibus.

Já, à época, era vista como uma pessoa simples, culta e pertencente a um segmento importante para aquela comunidade. Pobre que nem rato de igreja, mas peça de grande valia naquela engrenagem social. Por isso, e por medo, deixava-se escoltar.

Aliás, além do bom retorno dado pelos alunos, esse era um momento em que se sentia importante naquela comunidade: protegida, resguardada de malfeitores. Entre tantos ônus, havia, pelo menos, esses dois bônus, a saber: seus alunos e seus guardiões.

Pois é, parece que as coisas pioraram. A figura do professor não é mais vista como peça-chave pelos membros da comunidade, nem tampouco pelos alunos. O desrespeito, a violência e os comportamentos inadequados estão a imperar.

Portanto, provavelmente, hoje ninguém mais se preocupa em cercar o docente de cuidados com a sua integridade física em lugares conflagrados. Isso era na época da Professora Mariazinha. E olha que não faz tanto tempo assim. Hoje, ela estaria num mato sem cachorro.

Agora, pensando bem, sobrou uma coisa que lhe dá ainda um salvo-conduto para escapar da sanha de assaltantes que estão por aí, a todo instante. É a sua pobreza. Isso afasta qualquer meliante. É duro de dizer, mas a revelação, de que o assaltado é um professor, é salvo-conduto para não ser mais molestado. É até, como relatado em crônica transcrita na coluna do Paulo Sant’Ana, motivo de compadecimento pelo assaltante.

Pode ser que, além de frustrado, o assaltante tenha se lembrado da figura de algum professor que o tenha impressionado. Por que não? Todos foram crianças, a maioria foi à escola. A figura do (a) professor (a) fica sempre indelevelmente marcada na memória de qualquer criança. Mesmo que se esteja a falar de um assaltante.

Talvez, então, o salvo-conduto seja mesmo o fato de o assaltado ser um professor. Convenhamos que isso massageia um pouco o ego desse profissional, já que, de resto, nada mais tem sido feito para dignificá-lo.

Acho que está na hora de a sociedade gaúcha lançar mão desse salvo-conduto para edificar as bases de uma pirâmide mais justa, competente, crítica e assentada em valores éticos e morais tão necessários a quem almeja servir de modelo a toda a Terra.

Se assim não for, sua figura servirá apenas para dissuadir qualquer ladrãozinho barato, que não assaltará aquele que nada tem.

Pois, o que ele tem, de verdade, é moeda por demais valiosa, mas invisível aos olhos daqueles que insistem em não ver.


(Inspirado na coluna de Paulo Sant'Ana , Zero Hora, 31 de Julho de 2010)




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Segue abaixo comentário recebido por e-mail:


"Sonia

  Teu texto me lembrou passagens da minha prima quando era professora (já se aposentou). Primeiro, a escolinha, lá no morro do Guarujá, tinha um acordo com o "chefe" da região, um tal de "navalha" ou coisa parecida, pois ele tinha filhos estudando lá. Então, a escola não era nem assaltada e nem as professoras. A que situação chegamos, não?
  Outra: ela estacionou o carro no centro e o flanelinha veio e pediu tipo 10 reais. Ela disse, "dez reais, mas eu não ganho isso numa hora como professora !" E ele: "ah bom, se é professora não precisa pagar"
Bj"

Lizete Freitas Maestri