quarta-feira, 12 de outubro de 2011











CHAMA INTERIOR


O olhar que espia atrás da porta, em busca do engradado de garrafas de laranjinha, um conhecido refrigerante da época, constata que lá está ele. E isso queria dizer que o avô chegara. Ele sempre abastecia a despensa com guloseimas, além daquelas aguardadas garrafinhas. Uma vez ao ano, ele vinha à Capital visitar a neta. Permanecia um mês por aqui.

Os dias que antecediam sua chegada eram marcados por muita expectativa. Ela que ainda brincava de boneca, que tecia diálogos intermináveis com seus “filhos”, nesse período, esquecia deles e vivia no encalço do avô, que lhe fazia todas as vontades.

Certa feita, ao vê-la triste porque uma amiguinha tinha ganhado um anelzinho, brinde que acompanhava uma bala, e que essa ostentava a tal aquisição com certo ar de soberba, saiu em busca de uma solução. No dia seguinte, apareceu com dez aneizinhos, um para cada dedo, e aconselhou-a a ir brincar com a tal amiguinha. E lá, de longe, ficou a rir com a surpresa da tal guria. Dias depois, a neta acabou dando alguns anéis para a amiga, pois ganhara além da conta.

Esse era o meu avô. Ainda bem que eu, segundo a própria mãe, sempre fui uma criança cordata, não exagerada nos pedidos.

Às tardes, saíamos a passear pela vizinhança. Muito falante, como um bom italiano, e já conhecido de todos, ia cumprimentando quem encontrava pela frente. E se o convidassem para um cafezinho, lá íamos nós, casa adentro. A cozinha, com certeza, era o nosso destino.

Seguidamente íamos, também, ao armazém do seu Nico, onde comprávamos um rocambole “inesquecível”.

Soube pela minha mãe que, numa dessas estadas por aqui, estivera em Palácio visitando Dona Ana Niederauer Jobim, esposa do Governador Walter Só Jobim. Mantinham relações de amizade desde quando o Dr. Walter estivera por Santa Maria, investido do cargo de Juiz, posteriormente de Promotor e ainda à frente de uma banca de advocacia, antes de tornar-se Governador do Estado. E nada mais coerente, na sua ótica, do que ele a visitasse, levando recados da esposa, que não o acompanhava nessas viagens, pois não era minha avó, já falecida.

Contou, posteriormente, que fora recebido por Dona Ana com um sonoro: Como está, seu Noal? Ele teria interrompido uma reunião da 1ª Dama com senhoras de uma associação benemerente, que lá estavam reunidas para um chá. Segundo ele, teria ela se levantado e ido, gentilmente, atendê-lo, desincumbindo-se ele, assim, do pedido da esposa.

Ele, que se alfabetizara aos dezoito anos, incentivava meus estudos, pois eu já iniciara o Curso Primário. Dizia, já naquela época, que o mais importante para uma mulher, bem antes do casamento, era a sua formação acadêmica e a consequente independência econômica. Era um sujeito muito avançado para aqueles tempos.

Vez por outra, cometia até algumas transgressões quando cantarolava, em bom italiano, em voz baixa, por razões óbvias, o estribilho de “La Giovinezza”, o hino fascista. Um dia, até escrevera o tal refrão para que eu pudesse, também, acompanhá-lo. Era assim:

“Giovinezza, Giovinezza

Primavera di bellezza,

Della vita nell’asprezza

Il tuo canto squilla e va!” 



Acredito mesmo que seu fascínio era mais pelo intérprete do famoso hino, Beniamino Gigli, do que pelas ideias ali contidas. Adorava óperas e esse tenor, à época, era o maior, mundialmente conhecido e respeitado. 


Lembro-me dele cantando Santa Lucia, conhecida canção napolitana, também gravada pelo mesmo tenor. Anos mais tarde, eu executaria essa peça ao acordeom. Ele, porém, não estava mais por aqui para ouvi-la. 


Meu avô era, também, às vezes, meio irreverente, escandalizando quem estava por perto com suas “tiradas”. Certa feita, ao ver uma das filhas toda empolgada com o glamour que Hollywood exportava naqueles antigos anos, chamou-a assim: “Ó tu, de olivorkis”, não se importando com o falar errado. Era pura brincadeira quando fazia essas investidas. Todos riram, menos, é claro, a tiete hollywoodiana. 



Tinha bom humor, confiança em si próprio e fé Naquele que nos guia. 

Tinha, permanentemente, acesa uma chama que o acompanhou por toda a vida. Era um entusiasta do belo, da música, da vida. 

Foi essa mesma chama que me alimentou durante a infância, que me impulsionou sem temor ao desconhecido, e que me fez ingênua o suficiente para não sofrer tão fortemente com as agruras que a vida adulta certamente me reservaria. Essa alegria interior que nós crianças, todas, exercitamos durante a nossa infância. E que se deve manter acesa. Só assim conseguiremos superar momentos de dificuldades e de perdas. 

Pois, um dia, ao se despedir da neta, para retornar a sua cidade, não entendeu porque ela desandou num choro convulsivo, inesperado, como nunca fizera antes. Mesmo prometendo que voltaria no ano seguinte, como de costume, não foi capaz de fazê-la conter-se. 

Ele não sabia que não mais voltaria. 

Ela também não sabia. 

Mas ela sentiu: como só as crianças costumam sentir.





Cultivemos nossa chama. 


Que ela acesa nos mantenha adultos mais alegres, mais criativos, mais destemidos, mais solidários. 
Tão solidários como aquela menininha que ofertou alguns anéis à amiga, diante dos tantos que ganhara.

Que o entusiasmo ronde nosso agir.

Que nossa criança interior se mantenha para sempre presente no nosso dia a dia.

E que não apenas nos lembremos dela no Dia das Crianças.

Que os anjos nos protejam tal qual na infância.

Que continuemos acreditando neles.

E que recebamos um toque angelical nas ações que constroem nosso caminho.

É o meu pedido nesse dia especial.






Algumas peças musicais na voz de Beniamino Gigli:



 Non Ti Scordar Di Me



Nessun Dorma


O Sole Mio


Torna A Surriento





terça-feira, 20 de setembro de 2011











PAZ


O fogo atrai naquela gélida noite.

Todos ao redor como se estivessem absolutamente ligados àquele ritual ancestral. Os gravetos, habilmente dispostos ao derredor de uma lenha mais robusta, prendem o olhar do chiru. Os olhos de Teobaldo, peão de estância, fixam-se na chama que crepita.

Que tonteria querer saber o que se passa com o peão do lado! Está, também, ele preso pelo olhar ao fogo que arde. E assim estão todos por ali: aquerenciados, irmanados, seduzidos pela chama que propaga luz e calor.

Um latido próximo desperta os homens. O cusco veio se juntar aos companheiros de tropeada.

No descampado, hoje, não zune o minuano. Só o frio se espalha pelo campo.

Esta noite, Teobaldo está pensativo. Na roda do tempo volta à infância: aos tempos de guri. Vê-se encilhando um petiço e iniciando um arremedo de doma dentro do cercado da fazenda, onde morava. Lembra-se de dar voltas e voltas, no mesmo lugar, como se estivesse domando de verdade. E o poço redondo em que buscava água! O balde, pendurado por uma corda, se sumia numa escuridão também redonda, lá embaixo, longe dos seus olhos.

Estão por ali, agora, vários peões da estância. Lentamente, os causos começam a despontar e a cuia, de mão em mão, vai celebrando a união fraterna que a cena traduz.

Teobaldo, sentado num resto de tronco, com os ouvidos bem atentos, vai escutando tudo o que pode. Com a mão estendida, pendente ao seu lado, traça no chão um círculo dentro de outro círculo e, nesse, outro círculo menor e, daí em diante, vai se perdendo em pensamentos.

No alambrado da vida, vai escancarando desejos, peleando vivências, tropeando o dia a dia. Como um bagual, que não se entrega, desperta das lembranças com o passar da cuia às mãos pelos companheiros do fogo de chão. Ao lembrar-se do seio da mulher amada, no gesto de pegar a cuia, fixa o olhar no verde da erva.

Descobre, naquele momento, ao sorver o mate, sua ligação ao seio materno, aos olhos da amada, aos companheiros da roda de chimarrão. Dá importância à chama de um amarelo intenso, à lua cheia, toda branca, pendurada lá em cima, ao calor que cerca todos que ali estão. Em plena harmonia e paz, Teobaldo permanece sorvendo, de olhos fechados, aquele mate bueno. Solito, em seus pensamentos, vê o pampa sem aramados, sem fronteiras, com o minuano zunindo e as melenas seguras pelo chapéu de beijar santo em parede.

O certo é que essa sensação de paz é o encontro do ponto de equilíbrio: ele e o mundo. Teobaldo está ciente de que, nesse labirinto da vida, cada um tem uma entrada e uma saída. Sem esquecer, é claro, do PATRÃO que, da porteira, a todos vigia.

 E a Terra, toda redonda, vestida de azul, que a todos nutre e conserva, agradece o belo quadro que com ela foi construído naquela noite.



Que nesse vinte de setembro, relembremos nossas façanhas, nossos ideais, nossa visão libertária, mas, sobretudo, busquemos, sempre, acima de tudo, a paz. Que entre nós, paisanos, reine a justiça, o entendimento e a solidariedade: ingredientes saudáveis para uma coletividade que se quer modelo para outras.




Uma viagem pela música gauchesca:



terça-feira, 30 de agosto de 2011

PAI DOS MEUS BONECOS













Agachada em frente ao armário, com a mãozinha, ainda juvenil, vou armazenando, vou empilhando alimentos. São pacotes de arroz, feijão, massa, açúcar, bolacha, café, latas de azeite e tudo o mais que pudesse ser estocado por algum tempo. Todos estavam a fazer o mesmo. 

Afinal, aquela situação de incerteza poderia ainda perdurar por um bom tempo. Avizinhava-se, talvez, uma revolta. Meu pai andava, ultimamente, sempre de prontidão. Embora não fosse militar, trabalhava junto ao Hospital do Exército, sendo responsável pelo bom andamento de todas as oficinas que compunham o complexo hospitalar, e que davam suporte àquela Unidade. 


Quem diria! Aquele que povoara meu universo infantil, agora conclamava a população para empunhar a bandeira da Legalidade. 

Naqueles tempos em que se brincava de boneca, de casinha, de comidinha, essa figura representava para mim “o pai de meus filhos”, aquele que saía todas as manhãs para trabalhar. Parece mentira, mas era tão presente a figura desse líder nas conversas em família, que eu o havia incorporado como um membro da minha “família de mentirinha”. Todas as manhãs, portanto, preparava, naquele pequeno galpão, em meio ao fogãozinho, às panelinhas e às bonecas, um gostoso café. Tudo de mentirinha. 

Quando ocorreu o levante, eu, já uma jovenzinha, não me surpreendi com o alvoroço que tomara conta das ruas. Era quase uma coisa normal para mim, tal a familiaridade com o líder. Aliás, estudara em uma das escolas criadas por ele: as conhecidas brizoletas. Em uma delas concluí o Ensino Primário (o Fundamental). Em 1959, ainda não possuía nome essa escola, conforme foto de Boletim Escolar, constante abaixo. No ano seguinte, em 1960, a escola recebeu o nome de Grupo Escolar Dr. João Batista de Lacerda, denominação já impressa no Boletim Escolar. Essa foi a escola que me abrigou por primeiro. 







Em 1995, a antiga brizoleta foi demolida, erguendo-se uma nova construção em alvenaria. Nesse período de construção, a escola deslocou-se para o Educandário Dom Luiz de Guanella, lá permanecendo até março de 1997. Em novembro do mesmo ano, a nova escola foi inaugurada. Passou a chamar-se Escola Estadual Dr. João Batista de Lacerda, oferecendo o Ensino Fundamental e o 1º Grau Completo. O nome permanece o mesmo, os sonhos e as expectativas dos pequenos talvez tenham se modificado. Com certeza, porém, a garra, o envolvimento, a dedicação e o olhar dos mestres estão ainda presentes. E isso é que faz toda a diferença: tanto ontem, quanto hoje. 


Esse homem, decididamente, fizera parte do meu imaginário infantil. E ainda, naquele momento, era o centro das conversas em família. Todos prestando a ele um sincero respeito e uma total coesão em torno de seu nome e de sua causa. 

Lembro que, estando a faltar apenas dois anos para completar o Curso de Música, tocava com meu instrumento o Hino da Legalidade. Que tempos diferentes! 

Lia-se mais, refletia-se mais. Livros, jornais e revistas eram lidos, discutidos, comentados. A televisão ainda era incipiente. Tinha-se mais tempo para formular nossos próprios juízos sobre os assuntos, sem que houvesse direcionamento nas análises e conclusões. Acredito que existia mais conhecimento, reflexão, mais capacidade de crítica: fundamentos que repousam numa educação básica de qualidade. Algo que, na época, o nosso Estado ainda orgulhosamente ostentava. Embora, reconheça-se que, também, naqueles idos tempos, os professores tivessem seus salários aviltados, considerando-se a grandeza da função. Hoje, com todos os meios disponíveis, por que não mais nos conservamos no topo? São indagações que precisam ser respondidas no mais curto espaço de tempo possível. E medidas devem ser tomadas em um tempo mais curto ainda. 

Nós que defendemos, historicamente, a Constituição, o regime legalista, as instituições, a liberdade como bem maior, temos a obrigação cívica de lutarmos por uma educação compatível com a grandeza da nação brasileira. Uma educação de excelência para todos, principalmente para aqueles que dependem da escola pública para se tornarem cidadãos: capazes, conscientes, éticos e solidários. Dessa maneira, a inserção, no mercado de trabalho, far-se-á ao natural. 

Nesse mês de agosto, lembro-me daqueles tempos. Época que me traz gratas recordações. 
Lembranças de um universo infantil recheado de sensações, emoções, figuras e valores. 

Que coisa! 

Os bonecos daquela pequena menina tinham um pai: um líder admirado por seus pais e demais familiares. Quão grande valor ela atribuía a ele! 

Acho que não se fazem mais líderes como antigamente. Ele nunca soube dessa admiração profunda. 

Portanto, minha homenagem póstuma ao pai dos meus bonecos, meu primeiro marido.