domingo, 29 de novembro de 2009


LADEIRA ABAIXO


O sorriso do adolescente assusta. Como se estivesse observando uma cena cômica, ou curiosa, ou, quem sabe, inusitada, ele sorri.

É, com certeza, uma cena inusitada. Mas o nível de banalidade, com que se encaram cenas dantes inimagináveis, causa-nos descrença de que se possa, ainda, mudar o cenário de tamanha violência.

Em outros tempos, veríamos esse adolescente deslizando rua abaixo com seu carrinho de lomba. Ele e mais um punhado de amigos despencariam ladeira abaixo em brincadeiras sadias. Nesses carrinhos, colocavam toda a sua engenhosidade. A competição era em cima do mais bonito, mais criativo, com melhores rolamentos.

Que interessante!

Um carrinho de supermercado com um corpo dentro. Eh! O cara se ferrou!

Quem não se acostuma, quando se vive assim a maior parte do tempo. Quem não se acostuma?

O cara podia estar dentro de um saco, no fundo de um quintal. Ou no lixão, ou atirado na sarjeta. O fato em si tornou-se corriqueiro, banal. O inusitado é o carrinho de supermercado.

Com ele, geralmente, transportamos alimentos. Ou sobras, garrafas, jornais velhos, restos. Tudo, para quem necessita, virará alguma forma de subsistência.

Esse carrinho, porém, é diferente. Ele carrega, por assim dizer, a prova cabal do caos social em que se está mergulhado. É a selvageria escancarada que se abate sobre todos. Nada mais horrendo do que se olhar um semelhante em tais condições. Pior do que isso só os famintos, os seres esquálidos que se espalham em algumas regiões da África.

O que nos assusta, na cena, é o caráter de banalidade expresso pelo sorriso do garoto. Será que conseguiremos sair dessa? Estamos desconstruindo valores. Estamos voltando à barbárie. Hordas de malfeitores espalham-se, disseminam-se por entre grupos de indivíduos desprotegidos. Seres, em sua maioria, desqualificados pela miséria e ignorância, que viceja, e pela incúria de governantes.

Essa é uma sociedade que se torna mais frouxa a cada dia que passa.

Que país é esse!

Está em nossas mãos indignar-se. Está em nossas mãos exigir mudanças efetivas. E essa revolução tem sua origem na Educação que começa na família. Ela, não o fazendo, delega à Escola tal função, acrescida àquela que lhe é típica: fornecer o conhecimento formal. A Escola, por assim dizer, cumprirá também o papel da família. Para tanto, deverá ser de turno integral, mantida pelo Poder Público nas áreas de maior carência social. Desnecessário dizer-se que com um magistério motivado pela infraestrutura oferecida, dirigentes ligados aos meios acadêmicos, com formação em áreas da Educação, e professores percebendo um salário compatível com a importância de seu cargo.

Não há outro caminho. Povo culto é povo livre. É o cidadão capaz de discernir, de criticar, de desenvolver atividades produtivas, de autossustentar-se, de contribuir para melhorar a sociedade em que vive.

Se assim não for, nossas crianças, como recentemente já ocorreu, passarão a usar pó de giz embalado em saquinhos plásticos: fingindo um tijolinho de cocaína.

Teremos, aí, uma nova versão da brincadeira das cinco-marias, onde o arroz ou a areia virará pó de giz, por enquanto. Porque, no imaginário, já é o pó branco que circula de mão em mão. Novos usuários, novos traficantes, corpos desovados: é o cenário que se projeta.

E, assim, vamos ladeira abaixo, como num carrinho de lomba desgovernado, sem rumo, sem futuro. Ou melhor, com a certeza de uma infância perdida, de uma juventude corrompida e credora de uma dívida: a da sociedade brasileira para com seus filhos.

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