quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

PARA QUE TUDO ISSO?

Confessa que já anda meio deslocado. Até já mudou de data. Nem acontece mais no mês tradicional. Parece quererem que o esqueçam, ou que, pelo menos, não o queiram com tanta animação.
Os mais abastados, com certeza, escapam para outras paragens mais tranquilas, quando ele se aproxima.
Os que permanecem pela cidade aproveitam para um descanso mais espichado. Comodamente instalados, talvez o assistam pela televisão.
Quem não lhe abandona é mesmo o povão. Ah! Os salões das sociedades, ao que parece, também ainda o curtem.
Sua utilidade fica flagrante junto aos que menos tem. Sua importância é diretamente proporcional àqueles que pouco tem. Serve ele de compensação por tantos dias em que se tem tão pouco, em que se é tão menos.
Daí sua extrema importância.
Ele serve para muitos descansarem, outros muitos lucrarem e muitos milhões sonharem.
E o sonho é necessário. O sonho serve para desafogarmos mágoas, medos e tensões. Mas, também, serve para projetarmos caminhos possíveis, alternativas que se mostram ao acordarmos em alguma manhã diferente, de algum dia diferente.
Serve também o sonho para vestirmos uma fantasia majestosa e nos sentirmos reis. Afinal, um cetro e uma coroa não são para qualquer um. E esse sonho nos impele à construção de toda uma estória que, com começo, meio e fim, nos contará a vida, a obra, as façanhas, as supertições e todo o acervo humano, conquistado por séculos, tudo junto, contado e cantado numa única noite.
É! O reinado dura pouco. Mas, o quanto é importante!
E não é de circo que se está a falar. É de identidade, de participação, de superação, de sublimação para fatos importantes, não resolvidos, que se apequenam, frente ao espetáculo daquela noite. Ou se agigantam, dependendo do enfoque social trazido à cena.
Quando se escolhe um escritor para homenagear, que é da terra, cujas personagens forjadas são criaturas conhecidas nacionalmente e que traduzem tipos e formas de pensar, característicos do povo onde estão inseridas, é tudo de bom!
E é isso que a vermelho e branco, a Escola Imperadores do Samba, leva para a avenida no próximo dia 4 de março.
A Velhinha de Taubaté, coitada, já desaparecida, estará, porém, presente na avenida para lembrar-nos do grau de decepção que sofreu, depois da crise do mensalão, entregando os pontos, tenho certeza, antes da hora. Ela que sempre acreditava nos “governos”, quaisquer governos, apresentando sempre uma posição favorável a eles, instituídos, impostos, conduzidos, negociados ou eleitos.
Por outro lado, a socialite ravissante Dora Avante, ou Dorinha, graças a Deus, continua firme e forte, aparecendo de quando em vez com a Tati Bitati, destilando, através de seu discurso, a ironia sarcástica de seu genial criador.
Já Ed Mort, antigo detetive particular, sempre sem dinheiro, com seu famoso “escri”, de escritório, em Copacabana, cercado de baratas e do famoso rato Voltaire, deixa saudades.
E as Cobras, famosa coletânea de tiras, publicada em 1997, de circulação em alguns jornais brasileiros, que tinham como personagens o famoso Queromeu, o corrupião corrupto (tão atual!), além das lesmas Flexa e Shirley e o não menos famoso Durex, sempre a favor do governo em vigor!
E pra fechar o espetáculo o Analista de Bagé, figura caricata de um gaúcho metido a psicanalista. Sempre acompanhado por Lindaura, sua assistente, pronta a ajudá-lo em “todas” as causas e por “todos os meios imagináveis e inimagináveis”. Aprende-se com ele que o principal remédio para os males e dores subjetivas é o conhecido “joelhaço” que, aplicado no lugar correto, faz o vivente esquecer as dores “menores”, deixando, “de vez”, de frescura. Agora, se for mulher o paciente, as técnicas serão outras, aprendidas, acredita-se, atrás dos galpões.
Ora, depois dessa promessa de desfile, com criador e criaturas fazendo o espetáculo, a pergunta inicial pode ser devolvida com outra pergunta para esse senhor, já bastante idoso, que se chama Carnaval.
Para que serves? Deixe que eu responda.
Para que o povo armazene forças para matar um leão por dia, para que não perca a esperança frente aos embates que se seguem pelo ano afora, para que mantenha a autoestima em alta, para que o bom humor não o abandone, para que o sorriso do filho possa significar a esperança de dias melhores, para que saiba da sua força na transformação, para melhor, das instituições e para que saiba reivindicar, dentro da legalidade e da ordem, os seus direitos de cidadão.
Tudo, da mesma forma, como faz nos desfiles: interpretando os personagens da sociedade, cuidando da formação das alas, controlando o tempo despendido para cada evolução, desfilando no ritmo fornecido pela bateria, não atravessando o samba, compreendendo e respeitando as regras que o desfile exige.
Tudo para aprender a percorrer a avenida no compasso das batidas do coração, com segurança e coragem, rumo a uma melhor condição social que passa, necessariamente, pela correta interpretação do que o cerca.
E isso só se consegue com educação e cultura.
E o Carnaval é um pouco disso tudo.
Mas não é tudo. Há, ainda, um longo caminho a percorrer.
Por ora, armazenemos um tanto de energia nesse dia 4 de março, pois os dias, que se seguem, prometem.
Parabéns à Escola de Samba Imperadores do Samba e ao seu escolhido, o nosso Luis Fernando Veríssimo, para tema do samba-enredo desse Carnaval de 2014.
Um bom Carnaval a todos!





Clipe Oficial do samba-enredo da Escola de Samba Imperadores do Samba para 2014 





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

SEU SONHO ERA BEM OUTRO!

Foi muita frustração! Estava tudo acertado. Ele seria ela. Bela, colorida, variada nos matizes. Por um erro, que não sabe bem de quem, acabou na mesma família delas, mas com atributos que dispensaria, sinceramente.
Com certeza até abriria mão da coroa que lhe outorgaram, só para ser admirada, olhada, cultivada com todo o carinho.
Por vezes, se insurge, pois destoa, em beleza, da família a qual pertence.
Se a coroa não lhe traz benefício algum, o que adianta ser rei!
É um rei frustrado, pois seus súditos, embora gostando dele, por vezes, machucam-se ao tocá-lo. E ele gosta de ser tocado, puxa vida!
Tem o corpo todo espinhoso e ressequido e sua maciez está tão escondida que causa esforço e grande cuidado a quem precisa desnudá-lo. Possui farpas pelo corpo afora.
Na verdade, nunca conseguiu conformar-se com essa situação.
Além disso, guarda uma estória bem desagradável, que lhe contaram há anos atrás.
Pois um irmão seu foi causador, sem querer, de um ferimento, que teve como consequência a eliminação desse pobre irmão da vida daquela pequena vítima.
Existia uma menininha que gostava tanto desse seu irmão, mais tanto, que o consumia diariamente. Era um, inteiro, por dia. Ao final de vinte e poucos dias, na língua da pequena vítima surgiram pequenos cortes com pontos de sangue.
Vejam se isso aconteceria com o consumo diário de uma banana, uma maçã, uma pera ou uma ameixa. Poderia estar comendo até hoje sua porção diária, sem problema.
Mas a paixão é cega. Atirou-se, de cabeça, no consumo diário de um abacaxi. E deu no que deu.
Na realidade, esse coitado, pertencente à família das Bromélias, vive acabrunhado. Não é belo como suas irmãs, nem tampouco benquisto.
Vejam bem o que registra o "amansa-burros" sobre este vocábulo:

* Bras.Gír. – coisa trabalhosa, complicada, embrulhada, intrincada (Antes de viajar, teve vários abacaxis para resolver);
* “Dois meses depois, ela telefona em pânico: ‘Vou ser mãe!’ Do outro lado da linha, Sandoval explode: ‘Que abacaxi!’ E, então, começa a evitar a pequena.” (Nélson Rodrigues, 100 Contos Escolhidos. A Vida Como Ela É, II, pp. 57-58);
* Descascar um abacaxi: resolver uma dificuldade, um problema.
                                            (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 5ª edição)


Na verdade, nem sabe bem por que existe.
É gostoso? É.
É cheiroso? É.
É de difícil trato? Reconhece que sim.
Pergunta-se, até hoje, por que não lhe deixaram seguir o caminho das companheiras da espécie, por que o impediram de servir de enfeite nos avarandados?
Já tentou convencer-se de que vale mais, de que é mais importante do que as belas da sua espécie.
Analisa-se e percebe que cada um de seus “olhos”, que estão espalhados pelo seu corpo, corresponde a uma flor. Ele é, portanto, um conjunto de flores que se fundiram em um grande fruto de um só corpo. E pra compensar sua transformação em um fruto, e não uma flor, puseram-lhe no topo do corpo uma coroa.  Foi só pra enganar. Ela não lhe serve pra nada. Pelo contrário, é por ali que começam os primeiros sinais de sua destruição. É quando lhe arrancam esse sinal de nobreza, à força, ou ele apodrece, indicando a sua já próxima e completa deterioração. Por conta da beleza dessa coroa, ele é conhecido como o rei dos frutos. Alguns o chamam de rei das frutas. Imaginem! É pra enlouquecer!
Não tem certeza, mas acha até que vive menos tempo do que sua irmã, a bromélia em flor. Esse pensamento, que o atormenta, deve ser por conta da baixa autoestima que carrega consigo.
Ela até é nome de música da Bidê ou Balde, conhecida banda gaúcha.
Ele, depois de muito procurar, só encontrou referência a sua existência através da música Piuí Abacaxi. Assim mesmo foi só pra rimar com “por aí”.
Vejam:
“Piuí Piuí, Piuí Abacaxi,
Choc, choc, choc, choc por aí."

É! Pelo menos a letra da música fala em sino que toca. Acredita que aquele seu irmão, que salta da frente do vagão na descida do trem, é o tal apito: o Piuí.
O barulho do trem, por outro lado, lembra o som cadenciado do seu nome: abacaxi... abacaxi... abacaxi... abacaxi...
Isso não é o bastante, porém.
Ainda vai conferir melhor aquele vídeo.
Que tristeza!
Diante desse quadro, confessa que portar uma coroa é muito pouco.
Inconformado, declara-se ser uma fruta a contragosto.
Seu sonho era bem outro!

*Crônica elaborada a partir da frase “O ABACAXI É FRUTA A CONTRAGOSTO”, ideia guardada no baú da memória de Luis Fernando Veríssimo e revelada na crônica de sua autoria publicada, em 16 de fevereiro de 2014, no jornal O Estado de São Paulo, Caderno Cultura.
Em face da sua confissão de não ter a menor ideia do que pretendia dizer com ela, o que eu duvido por conta da genialidade que o faz meu ídolo, tentei achar uma explicação para a referida frase. Espero ter conseguido.


Bromélias – Bidê ou Balde


Piuí Abacaxi – Patati Patatá 



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O DONO DO ASSOBIO


Quer algo que está em desuso? O assobio.
E eram tantos os tipos de assobio, quanto os tons diferenciados que os caracterizavam.
Havia aqueles que faziam as moças, de antigamente, quase tropeçarem. Tomadas de surpresa pelo assobio galanteador, apressavam o passo ou o diminuíam, dependendo do momento e do lugar. E a autoestima ia às alturas. Hoje, a coisa é mais explícita. O assobio cedeu lugar à palavra. Por sua vez, acredito que ela tenha perdido a carga imaginativa que o assobio despertava.
Havia, também, quem costumasse assobiar para chamar alguém ou a atenção dessa pessoa. Hoje, essa prática cedeu lugar a um clique no celular que, com certeza, despertará a rápida atenção de quem estiver sendo chamado.
Ensina o dicionário que o assobio é um som agudo produzido pelo ar comprimido entre os lábios.
Agora, se existir entre os lábios um apito, teremos, igualmente, um assobio que soará por meio do sopro. Esses apitos ainda encontram-se entre nós com grande frequência na condução de manobras, na orientação do trânsito, em jogos e competições.
Houve, porém, o conhecido apito do afiador de tesouras que, hoje, está praticamente extinto. Raramente, ouve-se algum.
Outro velho conhecido era o apito das fábricas, coisa do passado, bem como o das locomotivas, o dos bondes. Todos ficaram perdidos na poeira do tempo. Aliás, Noel Rosa compôs o famoso samba Três Apitos, em 1933, que fez grande sucesso nas vozes de cantores da época. Lá aparecem os apitos da fábrica e a referência aos apitos dos guardas-noturnos, tão conhecidos naqueles tempos. Maria Bethânia gravou esse samba, em 1966, cuja letra pode ser ouvida no vídeo abaixo.
Ah! Tem o assobio do vento, lúgubre, que causa certo desconforto e até assusta. Claro que gaúcho não se assusta fácil e está acostumado com o assobio do minuano, atravessando as frinchas dos galpões.
Tem, também, por essas plagas o famoso Milongão Pra Assobiar Desencilhando.
Ambos os assobios, transformaram-se em músicas do cancioneiro gaúcho, conforme vídeos que seguem.
Alguns pássaros, como a Calopsita, assobiam, falam e até cantam. Ouçam este pássaro assobiando o Hino Nacional Brasileiro e, logo após, “falando”, isto é, repetindo frases para as quais foi treinado, em vídeos abaixo.
Entre nós, humanos, existem aquelas pessoas que entram em casa assobiando. Conheci algumas. Parece estarem sempre de bem com a vida. De bem consigo, eu diria.
Havia, também, aquele assobio, na frente de casa, que só ela reconhecia.
Bem antigamente, o assobio de reprimenda para que o cusco não fizesse algo que não devia. O assobio, hoje, foi substituído pela voz materna de “meu amor não faça isso”.
Agora, um assobiar que não se cansa jamais de assobiar é o de um cidadão que percorre, há bastante tempo, o bairro Menino Deus, um dos mais tradicionais da nossa Porto Alegre.
É uma pessoa franzina, de baixa estatura, de meia-idade, que pedala sua bicicleta recolhendo latinhas para vender nos galpões de reciclagem. Os sacos vão pendurados ao redor da bicicleta e vão se enchendo sempre ao som do assobio de seu condutor.
Esse assobio é encantador porque nos acorda, nos sacode, nos faz refletir sobre o que sustenta um ser tão apequenado de posses materiais, mas tão grandioso no seu enfrentamento com o dia a dia.
Em conversa com o cidadão, percebe-se que é uma pessoa plenamente hígida de suas faculdades mentais, responsável, e que tem uma receita simples e básica para tanta disposição: tem saúde.
Segundo ele, quando se tem saúde, tem-se tudo. O resto vai-se arranjando, do jeito que dá. É um cidadão com residência fixa e com uma esposa que se aposentou, ao que parece, pela condição de idosa carente. Ele, por sua vez, aguarda ainda mais uns dois ou três anos para se aposentar. Não sei se será pela mesma forma.
Não me perguntem como é a casa desse cidadão. Sei onde mora, embora não tenha ido visitar tal rua, ainda. Seja de que tipo for, está lá, no mesmo endereço, por já 30 anos, segundo ele.
Pois é, esse assobio vale muito, vale ouro para ele próprio e para quem o ouve passar, vários dias na semana, pelo bairro.
E quem dá cor e vida a esse assobio, cujas melodias, embora não perfeitamente identificáveis, mas todas em tons maiores como manda a alegria, é um cidadão de bem com a vida, de bem com o mundo. Declara-se feliz, pois possui o bem maior que o trouxe até aqui, até hoje: sua boa saúde.
Acredito que ela o acompanhará até os seus últimos tempos.
Como tudo o resto que por aqui adquiriu ficará por aqui, desde as latinhas até o pouco que conseguiu juntar em haveres, o que permanecerá será mesmo a lembrança da figura singela, porém marcante. Não por possuir demais, mas por possuir a consciência do único bem maior: a nossa saúde.
A nós todos cabe, apenas, homenagear o dono desse assobio.
Que ele continue despertando a atenção, dos que com ele cruzam, para o essencial da vida: estar em paz e ser feliz.
É! Estamos precisando de mais gente assobiando.






Três Apitos  - Maria Bethânia




Quando Sopra o Minuano – Os Serranos




Milongão Pra Assobiar Desencilhando – Luiz Marenco




Calopsita assobiando o Hino Nacional Brasileiro



Calopsita falando



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Comentário via Facebook:
Maria Odila Menezes
escreveu:
 Adoro ouvir o assobio dos pássaros! Confesso que eu,também, gosto de assobiar!!!rsrsrs Parabéns, Soninha, pela bela crônica!
  

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

TAREFA INDELEGÁVEL


Aquela menininha que ouvia o bater de folhas secas, caídas das árvores, sobre um chão batido e que formava figuras quando olhava o passeio das nuvens no céu, só pode, hoje, encantar-se com imagens como as que seguem:
Que no céu só vi tudo quieto, só um moído de nuvens (...) e tantas cordas de chuvas esfriavam as cacundas daquela serra.
Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com as mãos de azul.
O luar que põe a noite inchada.
Saí de lá aos grandes cantos, tempo de verde no coração, numa alegria feito nuvem de abelhas em flor de araçá.
Me lembrei da luzinha de meio mel, no demorar de olhares dela, (...) a docicez da voz, os olhos tão em sonhos.
                
(Trechos da obra GRANDE SERTÃO VEREDAS de João Guimarães Rosa)

Ou, quem sabe:
É uma sombra verde, macia e vã.
                                                        (Carlos Drummond de Andrade)

Ou, ainda:
Nasce a manhã, a luz tem cheiro... Ei-la que assoma
Pelo ar sutil... Tem cheiro a luz, a manhã nasce...
Oh! Sonora audição colorida do aroma!
                                                          (Alphonsus de Guimaraens)

Ou, também:
A noite dorme um sono entrecortado, alfinetado de grilos.
Há sempre, afastada das outras, uma nuvenzinha preguiçosa que ficou sesteando no azul.
As águas riem como raparigas
À sombra verde-azul das samambaias.
                                                 (CADERNO H – Mario Quintana)
                        
Essas são imagens ligadas à Natureza descritas não apenas por poetas, mas por escritores que usam da infinita possibilidade que ela oferece a quem se detém a observá-la.
Mas será que hoje, ainda, será possível manter-se essa capacidade de observação diante do uso da Internet, quase que dia e noite?
Já Quintana escrevera em seu CADERNO H, sob o título O MUNDO, o seguinte:
A coisa começou desde os dias já remotos da invenção do telégrafo. Depois foi o TSF, o rádio, a TV, etc. E o Tempo, atônito, engolindo o Espaço. E esse vasto mundo diminuindo, diminuindo, diminuindo... até se vir esconder covardemente dentro do nosso quarto.
E para piorar, quando esse jovem sai do quarto, o que encontra pelo caminho, no bairro onde mora? Lixo espalhado, árvores que teimam em sobreviver, seres humanos atirados pelas calçadas a dormir o sono dos anestesiados pela fome, pela droga, pelo desamparo, pelo “nem aí” do coletivo que desvia, sem muito olhar.
À noite, o céu ficou reduzido a faixas entre um edifício e outro. E ela, a noite, está perigosa, muito perigosa. Sentar na calçada é coisa de antigamente. A coisa de hoje é trancar-se dentro de casa, de preferência no quarto, em frente à Internet. Mas existe muito mais além dessa tela.
Existem:
Uma rãzinha verde no gris da manhã...
Um sorriso na face de um ceguinho...
Uma nota aguda como uma pergunta de criança...
Um cheiro agradecido de terra molhada...
Um olhar que nos enche subitamente de azul...
                                                         (COISAS – CADERNO H)

E, também, muito tempo atrás:
Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio de parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.
                                                          (TEMPO PERDIDO – CADERNO H)

E, ainda, Quintana:
Aprendi a escrever lendo, da mesma forma que se aprende a falar ouvindo. Naturalmente, quase sem querer, numa espécie de método subliminar. Em meus tempos de criança, era aquela encantação. Lia-se continuamente e avidamente um mundaréu de histórias (e não estórias) principalmente as do Tico-Tico. Mas lia-se corrido, isto é, frase após frase, do princípio ao fim.
Ora, as crianças de hoje não se acostumam a ler correntemente, porque apenas olham as figuras dessas histórias em quadrinhos, cujo “texto” se limita a simples frases interjetivas e assim mesmo muitas vezes incorretas. No fundo, uma fraseologia de guinchos e uivos, uma subliteratura de homem das cavernas.
Exagerei? Bem feito! Mas se essas crianças, coitadas, nunca adquiriram o hábito da leitura, como saberão um dia escrever?
                         (O QUE ACONTECE COM AS CRIANÇAS - CADERNO H)

Competiria aos pais dessas crianças, não a nós, incutir-lhes o hábito das boas leituras. Ora essa! Mas se eles também não leem... Vivem eternamente barbiturizados pelas novelas da Televisão.
                     (O QUE ACONTECE COM OS PAIS – CADERNO H)


Mas o que tem isso a ver com a tela do computador, com o acesso ilimitado a todos os sites possíveis, durante um tempo ilimitado, sob um bombardeamento de assuntos, propagandas, mensagens subliminares e por aí?
Pois a questão de fundo é mais grave do que se pensa.
E aqui chegamos ao excelente livro de Nicholas Carr, traduzido para o português, em dezembro de 2011, com o título A Geração Superficial: o que a Internet está fazendo com os nossos cérebros. Vale a pena lê-lo. É um livro de grande profundidade onde Carr analisa as influências negativas que a Internet exerce sobre quem a usa.
Na obra, Carr comprova, por experiência própria, a considerável diminuição da sua capacidade de concentração e contemplação. Ele próprio afirma que estava se tornando incapaz de prestar atenção a uma coisa por mais do que uns poucos minutos. Conforme narra em seu livro:
“Comecei a perceber que a net estava exercendo uma influência muito mais forte e mais ampla sobre mim do que o meu velho PC solitário jamais tinha sido capaz. Não era apenas que eu estava despendendo muito mais tempo defronte a uma tela de computador. Não era apenas que tantos dos meus hábitos e rotinas estavam mudando porque me tornei mais acostumado com, e dependente dos, sites e serviços da net. O próprio modo como o meu cérebro funcionava parecia estar mudando. Foi então que comecei a me preocupar com a minha incapacidade de prestar atenção a uma coisa por mais do que uns poucos minutos. Primeiramente tinha imaginado que o problema era um sintoma de deterioração mental da meia-idade. Mas o meu cérebro, percebi, não estava apenas se distraindo. Estava faminto. Estava exigindo ser alimentado do modo como a net o alimenta – e, quanto mais era alimentado, mais faminto se tornava. Mesmo quando eu estava longe do meu computador, ansiava por checar meus e-mails, clicar em links, fazer uma busca no Google. Queria estar conectado. Assim como o Word da Microsoft havia me transformado em um processador de texto de carne e osso, a Internet, eu sentia, havia me transformado em algo como uma máquina de processamento de dados de alta velocidade, um HAL humano”. (p.31 do citado livro)

O autor do livro destaca, segundo sua própria experiência, vários efeitos que a Internet ocasiona em quem dela faz uso constante. Entre tantos, ressalta a distração do usuário, a alteração da sua estrutura cerebral, a modificação na maneira de pensar e agir, bem como a perda do autocontrole e da calma interior. A partir dessas conclusões, teríamos uma leitura descuidada, um aprendizado superficial e o cultivo de um pensamento distraído e apressado.
A Internet, conforme estudos, cerca-nos de estímulos sensoriais e cognitivos intensos, repetidamente, de forma interativa e aditiva, levando-nos à condição de um viciado, sofrendo esse intensas e rápidas alterações dos circuitos e funções cerebrais.
Com isso, estamos perdendo a capacidade de ler profundamente.
Jakob Nielsen, dinamarquês, cientista da computação com PhD em interação homem-máquina, já em 1997, afirmara que os usuários da web não leem. E isso seria, segundo Carr, uma involução da civilização, pois estaríamos passando da condição de cultivadores de conhecimento pessoal para os ancestrais caçadores e coletores da floresta dos dados eletrônicos. (p.192 do citado livro)
Se a web consegue fragmentar nossos pensamentos, desconcentrar-nos, levando-nos a perder o foco, ou melhor, pulverizando-o para multitarefas, o que acarretará uma diminuição na capacidade de pensar e raciocinar sobre uma questão, perderemos a originalidade e a possibilidade criativa de um cérebro livre, não dominado.
E ao que parece ninguém está muito interessado em uma leitura vagarosa, num pensamento concentrado. O negócio, que é um negócio, é mesmo a distração dirigida aos produtos que estão em oferta no mercado para serem vendidos e consumidos.
E isso compromete a cultura, pois ela não pode ser volátil e sim renovada nas mentes daqueles seres que compõem cada geração.
Carr, ainda afirma, na página 293 do citado livro:
“Quando alguém escavando valas troca a sua pá por uma escavadeira, os músculos dos seus braços se enfraquecem mesmo que a sua eficiência aumente. Uma troca semelhante pode acontecer ao automatizarmos o trabalho da mente.”

E, mais adiante, ainda afirma na página 299, que experimentos indicam que quanto mais distraídos nos tornamos, menos aptos somos a experimentar as formas mais sutis, mais distintamente humanas, de empatia, compaixão e outras emoções. Seria precipitado concluir que a Internet está solapando nosso senso moral. Não seria precipitado sugerir que, à medida que a net está fazendo o roteamento dos nossos caminhos vitais e diminuindo a nossa capacidade de contemplação, está alterando a profundidade de nossas emoções, assim como de nossos pensamentos.
.
E, na página 301, finaliza citando Martin Heidegger, filósofo alemão que, já na década de 50, observara que:
“A onda de revolução tecnológica iminente poderia cativar, enfeitiçar, deslumbrar e distrair de tal forma o homem que o pensamento calculista poderia um dia vir a ser aceito e praticado como o único modo de pensar. A nossa capacidade de engajamento no pensamento meditativo, que ele via como a essência mesma de nossa humanidade, poderia se tornar vítima de um progresso desenfreado. O avanço tumultuado da tecnologia poderia abafar as percepções, pensamentos e emoções refinados que somente surgem com a contemplação e a reflexão.”

A constatação de Carr, ao sentir-se como uma máquina de processamento de dados de alta velocidade, corrobora estudos que conduzem à conclusão de que seus usuários constantes, alvos de estímulos sensoriais e cognitivos intensos, são levados à condição de viciados.
Ao que parece, por aqui, já começaram a surgir casos de drogadição por uso constante da Internet, como demonstra a reportagem do Jornal Zero Hora, de 02 de fevereiro de 2014, juntada abaixo. Nela, a psicóloga, que atende a paciente, afirma que no processo de reabilitação os sintomas são os mesmos de um viciado em drogas.
Então, meus caros, trabalhos como o citado na crônica ATÉ QUE ENFIM..., publicada em 19/10/13, são de vital importância para a manutenção, no ser humano, daquilo que lhe é próprio. A capacidade de expressar em palavras o sentimento que se instala pela junção de todos os sentidos convergidos, transpondo para o papel todo um poder de contemplação, de observação, de ligação entre o eu e o outro, entre o eu e a Natureza. Nada virtual. Tudo bem real.
Chuva é uma gota que cai do céu.
Paz é quando a gente fica quieto. Daí conseguimos escutar a paz.
                                    (trabalhos de alunos de escolas da Capital, inseridos numa Amostra de W. Carol, artista plástica). 

Uma iniciativa de grande valor.
Ah! Levem suas crianças para os parques, para locais onde possam manter contato com a Natureza. Isso será de grande valia para elas e seus descendentes.
Portanto, crianças, saiam do quarto, façam o contrário do descrito por Quintana em seu O MUNDO, transcrito acima.
E, uma vez mais, Quintana:
As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas... Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada.
                                                 (NADA SOBROU – CADERNO H)

Sendo assim, Quintana, novamente, estava certo, quando escreveu:
O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
                                                  (A ARTE DE LER – CADERNO H)

É! A menininha, que ouvia as folhas secas caírem, concorda com Nicholas Carr, integralmente: contemplação e reflexão ainda são fundamentais. A máquina é APENAS uma ferramenta a nos auxiliar. O ser humano e a Natureza, caminhando juntos, evoluirão de forma gradual e sustentável. A tecnologia deverá ser mantida e garantida como uma conquista do homem, mas não levada a causar-lhe uma gradual deterioração da sua capacidade de pensar, de refletir, e, principalmente, de sentir, de emocionar-se, de criar afetos.
Convenhamos, máquinas não sentem.
E, muito menos, apaixonam-se.
Deixem essa tarefa para os humanos, pois nisso são competentes criadores e criaturas.
Não esqueçam, porém, de manter viva a criança interior. Imaginem-se...
Pegando carona na cauda de um cometa
Indo ver a Via Láctea
Estrada tão bonita...
                                           LINDO BALÃO AZUL (GUILHERME ARANTES)
 
Boa audição!

Lindo Balão Azul – Guilherme Arantes
 
Reportagem ZH – Dia 02/02/14 – p.30 – SEM DESCONECTAR


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Comentário via Facebook:
Maria Odila Menezes escreveu:
Com certeza, Soninha!" Sentar na calçada é coisa de antigamente." Adorei tua crônica!!!Bjs