segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O PEDIDO DE VALENTE












Quando Valente dobrou a esquina daquela rua, que conhecia de nome, já sabia o que o aguardava. Meses a fio ouvira aquela conversa. Agora era pra valer! Parece que a coisa se tornara moda. 

O que o assustava é que, se as coisas continuassem assim, perderia até sua principal característica: seu faro. Com certeza, ele iria perder-se em meio a tantos cheiros desconhecidos. Teria que se exercitar, que aprender os novos aromas que se anunciavam. 

Valente avançava, cabisbaixo, rua acima. Nada mais seria como antes. Perderia a espontaneidade pra tudo. Ficaria embaraçado frente a uma parceira. E se ela também adotasse a mesma moda? Até que pra ela era compreensível tal revolução estética. 

Valente, definitivamente, não se conformava com tais modismos. Na verdade, as coisas deviam ficar como sempre tinham sido. Tudo bem definido: cheiros, cores, o visual de cada um no original, de nascença. 

E quando tivesse que levantar a perna? Será que teria alguma mudança? E quando estivesse a fim..., como identificaria a sua cara-metade “da hora”? Será que conseguiria definir o cheiro do prazer, em meio a tantos outros cheiros? Isso, decididamente, não ia dar certo. Ia acabar se confundindo. E daí? Babaus... Ia ser um salve-se quem puder! Por que tinham que inventar tais coisas? 

Enquanto se preparava para o sacrifício, ia meditando sobre os velhos e bons tempos. 

Que saudade daquele quintal, lá no bairro Petrópolis, em que vagava por entre as árvores, tendo sempre ao lado Isadora, sua companheira. Sabia perfeitamente quando ela estava “naqueles dias”. E “aqueles” eram os melhores dias de sua vida. Tudo seguindo o seu curso natural. Nada de inovações. Tudo previsto e instintivamente perseguido. 

Mas aí... Dona Gertrudes, sempre tão carinhosa, um dia, resolveu entregá-lo à Beatriz, sua irmã, que o levou para morar com ela. Sabe onde? Num apartamento. A coisa mais horrorosa! Tinha sido levado para fazer-lhe companhia, pois ela enviuvara há pouco. Desse dia em diante, sua vida começou a mudar. E, para pior. Agora, porém, chegara ao fundo do poço. Sentia que, qualquer dia, acabaria virando Valentina. Com esses pensamentos sombrios, adentrou, a contragosto, na tal casa. Sentia que ali começaria sua derrocada como espécie. 

Uma voz suave convidou-o a entrar: 

- Por aqui, meu fofo! Beatriz voltaria, em três horas, para buscá-lo. 

Dali em diante, viu-se rodeado por mais duas vozes meigas a com ele conversar. E, principalmente, a conversarem entre si. O que se sucedeu, a partir daquele momento, vale uma história e tanto. 

Depois de muita conversa, resolveram iniciar a transformação de forma “light”. Nada muito agressivo! 

Mergulharam-no numa banheira muuuuuuito cheirosa. Com as barbas de molho e o resto também, ficou a meditar por minutos nessa nova vida que se anunciava. Vira e mexe estaria nesse salão de horrores novamente. 

E era shampoo, condicionador... E dê-lhe água. De repente, aquela água foi sumindo para outra ir chegando. E o pobre ali mergulhado. O cheiro agora era bem definido: era de chocolate. Conversaram as moças entre si que era hora da hidratação de chocolate. Pra que tanto cheiro? Pensou com seus botões: isso não vai dar certo... 

Sentindo-se mais lambido que terneiro recém-nascido foi, finalmente, retirado da banheira e levado para o soprador. E depois, claro, para o secador: que são coisas diferentes. 

Daí, partiram para uma boa escovada e mais um spray perfumado, com o qual quase tonteou. Para finalizar, um laçarote cor-de-rosa pra segurar a franja teimosa. E com os olhos, agora, bem à mostra foi que avistou Beatriz chegando toda feliz. 

A que ponto chegará! Que inveja do “alemão”! Ele é um amigo que circula pela rua onde Valente mora. Sempre de bem com a vida. Todos o conhecem e ele a todos cumprimenta, balançando o rabo: mais faceiro que pinto em quirela. Dão-lhe, todos os dias, o que comer. É freguês do boteco da esquina. Vive solto a vadiar. Não tem obrigações. Pode fazer cocô e xixi em qualquer lugar. Encontra-se, sempre que dá no jeito, com as gurias da zona, isto é, da zona onde mora. É bonito, aloirado, garboso. Vive, por assim dizer, sem frescuras. Isto é que é vida! 

Agora, essa sua vidinha está se tornando um saco! Na verdade, o que mais o preocupa é a questão dos cheiros, dos odores misturados com os perfumes. Está perdendo até o apurado faro, seu ponto forte. E o pior... Acredita que terá dificuldades, daqui pra frente, em distinguir aquele cheiro tão bem-vindo, que há tempo não mais encontra, por absoluta clausura. Já anda até destreinado! E se facilitar, poderá enganar-se feio. Já pensou? Que vexame! 

Talvez o melhor seja mesmo acomodar-se em sua nova caminha e sonhar com a chapinha, a escova de morango ou chocolate e com a vinhoterapia pra pets. Disseram, lá na petshop, que vai revitalizar seu pelo através do poder antioxidante dos polifenóis contidos na uva, além de serem ricos em vitaminas A, C, e E. 

A única dúvida é se isso vai torná-lo mais feliz. A clausura já se instalou mesmo. Parece não haver saída, senão deitar e gozar. Gozar? Isso é coisa pra geração passada. Essa nova espécie canina anda mais frustrada que os seus próprios donos. Aliás, já incorporaram todos os tiques e manias dos seus senhores. Sabe de uma coisa? 

Se ficar muito difícil aguentar esta barra, Valente acha que vai exigir um apoio psicológico, ingressando nesses grupos de terapia para cães. Afinal, já é praticamente um ser humano! Escovam-lhe diariamente os dentes, faz xixi e cocô numa espécie de vaso sanitário, come salgadinhos, waffle com chocolate, tem à sua disposição toda a sorte de petiscos. O que mais querem? Que fale? Pô, aí seria demais... Mas, se fosse possível, diria a Beatriz que o trate com mais carinho, que o afague, que seja menos rude. Pois é isso que todo ser vivo mais quer. Não interessa essa formosura toda, que é só aparência, se não nos relacionamos com amor. E, se não for pedir muito, que lhe dê um pouquinho mais de liberdade. Afinal, a espécie precisa perpetuar-se. E disso os humanos entendem muito bem.