sábado, 12 de novembro de 2011











O ENCANTO QUE SE RENOVA


A imagem trago na retina.

A menininha se esgueira por entre as prateleiras e logo surge com um livro infantil. Senta-se no degrau que havia na antiga Livraria do Globo, entrada pela Rua José Montaury, bem no meio da loja.

Sofregamente, começa a leitura, virando as folhas com relativa rapidez. Por vezes, se detém em uma ou outra página, olhando com atenção as gravuras que acompanham a história. Já sabe ler. É um encanto vê-la absorta daquela maneira. Bem antes que eu faça as compras necessárias, lá está, novamente, ela com outro livro. Eu que também pretendia comprar algum livro para ela, nem sei mais qual devo adquirir. Aqueles já lidos, não há mais interesse. Então, juntas, eu e minha filha, escolhemos outro para ler “em casa”.

Assim é que se criam leitores: oportunizando-se o acesso aos livros.

Agora, lá pela década de 30, em Santa Maria, a avó dessa menininha já possuía o amor pela leitura. Embora tivesse apenas frequentado as séries iniciais do Curso Primário, teve acesso, à época, a uma biblioteca pertencente a um famoso médico da cidade.

Junto à janela, sob a luz do luar (a energia elétrica andava racionada), pois só dispunha da noite para desfrutar desse prazer, ela, que criava os irmãos mais jovens, pois a mãe falecera precocemente, leu obras universais. SONIA OU O CALVÁRIO DO POVO RUSSO, romance em fascículos, de Ivan Kossorowsky, versão portuguesa de Alfredo Castro, foi apenas uma delas.

Eu, que vim bem depois, fui registrada com o nome de Sonia, em razão do nome da heroína do referido romance.

Os livros têm uma enorme importância em nossa vida.

Anos mais tarde, já frequentando o Curso de Letras, tive que ler inúmeros livros. Autores brasileiros e portugueses foram revisitados por nós, alunos, ao longo do curso. E nesse período, minha mãe, que se acostumara a ler por prazer, manteve essa necessidade ao longo de toda a minha graduação. Lembro, com clareza, dela lendo, por inteiro, livros como o Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e tantos outros autores nacionais e também portugueses.

Que magia há por trás do ato de ler!

Abeberar-se no texto, jogar-se com o autor, de cabeça, nas paisagens descritas, nas cenas comoventes, ver-se desnudo, de repente, a partir de traços psicológicos desenvolvidos pelos personagens, é uma experiência indescritível. Deparar-se com trechos que aguçam nossos sentidos, que nos levam a sentir aromas, cheiros, calor ou frio, a quase enxergar ou ouvir, tal a força da descrição, é muito prazeroso.

A palavra é o instrumento que nos diferencia: que nos faz humanos. Apenas nós temos esse privilégio. Podemos expressar, através dela, todos os nossos sentimentos, sejam quais forem eles. O nosso balbucio prepara-nos para a expressão maior: a articulação de palavras que comporão nosso arsenal no ato da comunicação interpessoal.

Mais tarde, se mantivermos um contato amiúde, o mais cedo possível, com a palavra escrita, sentiremos prazer no ato de ler. E quem sabe, alguns se tornem até escritores. Se essa vocação não se fizer presente, restará, sem dúvida, o amor pela leitura. E, com certeza, uma maior capacitação no ato da escrita.




Alice, só torna-se ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS a partir do momento em que ouve a irmã lendo um livro, adormece e sonha. O buraco profundo, onde cai, a leva a um local mágico onde tudo é possível acontecer. A história termina com o acordar de Alice, descobrindo ter sido tudo um sonho. Lá, nas profundezas da nossa mente, estão abrigados todos os nossos sonhos.

O PEQUENO PRÍNCIPE sabe que “num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo”. Utilizando-se dessa assertiva, acreditamos que aquela pessoa, que se acostumou a privar com os livros, terá neles um amigo constante que, muitas vezes, poderá substituir um amigo de carne e osso. Isso está bem claro no comportamento daquela jovem da década de 30, ávida de leituras, carente de tempo, de amigos, de futuro. Afinal, era preciso voar, mesmo que em sonhos: libertar-se.

Ainda lembrando a raposa, de O PEQUENO PRÍNCIPE, diz ela que “o essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. Sabemos que o início do desenvolvimento intelectual de uma criança é muito delicado. Ela captará pela palavra, pelas gravuras, pelos desenhos, a magia do texto, que é invisível, mas que lhe possibilitará ver com o coração.

Em GRANDE SERTÃO: VEREDAS, Riobaldo diz, a certa altura, “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”

No fio condutor do tempo, com as leituras que se sucederem, teremos essa comprovação. E assim, conforme vamos nos definindo, e isso parece não ter fim, assim também vamos, através das leituras de livros, nos modificando a cada nova compreensão que obtemos, a cada releitura.

E nesse moto-contínuo, aprendemos a tarefa de “criar laços”. Com quem? Com os livros, pois neles está a nossa necessidade maior, que é abastecer nosso ser com o que de melhor nós, humanos, dispomos: nossa capacidade de criar. Criar novas realidades, recriar o que já existe, descobrir-se e redescobrir-se a cada nova leitura.

E essa tarefa, com certeza, começa desde cedo.

Preservemos o encantamento com a palavra, com os livros, com nossas humanas histórias.

Que esse encanto se renove a cada olhar deitado sobre as páginas de um livro: uma possibilidade renovada de um novo olhar sobre as coisas, sobre as gentes do mundo. Que ele nos auxilie na busca de nós mesmos e no encontro do conhecimento.


E a imagem da menininha, surgindo com um livro na mão, volta uma vez mais.

E eu, novamente, suspendo a cena no olhar e saúdo os livros e os eventos que os consagram.