sexta-feira, 31 de outubro de 2008


 

DAS ÁGUAS...


Estela vai desviando das poças d’água. Busca com os olhos o lugar melhor, na calçada, para pisar. Chove muito. Como tem chovido!

Uma imagem assalta seu pensamento. Aquela da crônica que, há tempos, escrevera.

A cena do redemoinho, da avalanche que se avizinha, de um movimento que começa lento e vai-se acelerando: até o irromper, por estreita passagem, de um novo ser. Lá esteve, por bom tempo, imerso em meio líquido. Seu corpo é mais de 70% composto de água. Aliás, o que une toda a humanidade, bem como toda forma de vida, é a água. A própria superfície do nosso planeta, em sua maior parte, é água.

A água é sempre benfazeja. Ela alimenta, cura, purifica, limpa. Ela faz parte de nós. Estela vai assim divagando. Seu pensamento borboleteia, buscando ideias. Esbarra em conceitos, se embaraça em teorias.

De algum lugar, um pássaro cantor interrompe seu pensar. Mas pensar ainda é próprio de sua espécie. Assim, persevera e continua estabelecendo comparações, analogias. Busca, por assim dizer, a convicção da melhor opção. Para si, para o outro ou para ambos?

Puxa, é difícil! Melhor seria ter permanecido deitada em ventre esplêndido, ao som de um mar profundo e à luz dos olhos da mamãe, que cuidava dela o tempo inteiro.

Mas, que nada! Hoje, Estela está aqui: pronta para decidir. Ela que é quase só água, não pode colaborar para o barco fazer água. Que responsabilidade! E disseram a ela que isso é ter espírito cívico. Será?

Será que ela deve depositar sempre em outras mãos a solução de problemas em que se sente tão omissa? Será que os vizinhos da sua rua não poderiam, quem sabe, resolver aqueles problemas tão próximos a si próprios? E os da rua seguinte, outros problemas próximos a eles?

Oh, quantas questões! Pensar é preciso. Temos o maior poder à nossa disposição que é o pensamento. O problema é aprendermos a usá-lo, guiando-o pelas veredas do bem comum. Há que se ter um olhar estendido ao coletivo e que ações concretas sejam implementadas. Que discurso mais bonito, Estela!

Deixa os discursos pra eles! Trata de ti, dos teus e, se fores mesmo uma cidadã consciente, cuida, dentro do possível, daqueles a tua volta. Que já fazes muito!

Quanto à chuva, tenho certeza de que esperas com ansiedade que ela lave por completo a sujeira que, porventura, tenha ficado por debaixo dos discursos. Que ela cure as ofensas ditas e as injustiças cometidas: tudo assistido por todos nós. Que ela alimente novos projetos e aqueles outros tantos em andamento.

E, principalmente, que nessa hora derradeira, irrompa, desse caldo de águas um tanto quanto turvas, um condutor à altura de Estela e de seus concidadãos.

E que se CONFIRME o acerto na escolha com a tecla CONFIRMA.


domingo, 12 de outubro de 2008



DESVIOS

-“Pô, cara, se a gente róba, é robo mesmo. Agora, se é os cara lá de cima, é desviu. Tu já viu?

-É..."

Pois é, a conversa foi captada por ouvidos e olhos atentos.

Os dois homens sentados no chão, em andrajos, junto à grade que circunda a
Fonte Talavera, em pleno coração da cidade, estavam ali a falar sobre os vários nomes que podemos dar às atitudes manifestadas por uns e outros.

Que exercício interessante, considerando-se os seus interlocutores!

Estavam eles, ali, desviados de sua função: que é não pensar. Como ousam!

Isso é, com certeza, um desvio. Mas são tantos os desvios... Até é temerário enumerá-los.

Desviemos o foco. Partamos para longe, porque é mais seguro.

Pois até o prêmio mais cobiçado, num mundo tão conturbado por guerras, dizem que pode ter tido seus desvios. Algumas indicações repousariam sobre interesses escusos.

Desvio também houve, quando aqueles imigrantes africanos desaparecidos, que se suspeita terem sido atirados ao mar por contrabandistas de pessoas, tiveram seus sonhos desviados por uma rota sem volta.

Desvios excessivos, também, cometeram os executivos que estavam no comando de grandes bancos internacionais. Que grandes desvios!

Comentam que até o cartel do petróleo sofreu com toda essa turbulência. Terão que fazer, provavelmente, um corte na sua produção. Haverá necessidade de reorganizar as peças do xadrez. Poderemos todos levar um xeque-mate.

O risco de uma recessão econômica mundial é assustador. Mas, seus comandantes usarão todas as suas armas, artimanhas, simulações, mentiras, todo o arsenal semântico disponível, ou até criado às pressas, para superar a tal crise avassaladora. Saberão distribuir os prejuízos dessa crise. Despejando mais sobre a base da pirâmide, como sempre.

E os dois mendigos?

Continuarão cantando o samba Deixa a Vida me Levar, até que a morte os abocanhe.

Agora, hoje, neste Dia da Criança, o desvio de um catador de latinha, do seu habitual caminho, fez-me lembrar de alguns gestos e atitudes que revelam o nosso “eu criança”.

Ele, atravessando a rua por onde habitualmente passa, deteve-se embaixo de uma cerejeira-do-mato. Saltou de sua pequena bicicleta, passando a colher suas frutinhas. Catava também as do chão, as do meio-fio, pondo-as no bolso da camisa e da calça. Comia, com sofreguidão, e saltitava ao redor da árvore como uma criança.

Pois até dizem que a tal frutinha quase não tem gosto. Mas aquele gosto, com certeza, lembrava o de sua infância. Reviveu, por instantes, o guri de outrora.

Eu, por minha vez, flagrei-me com a mão esquerda fechadinha, escondendo o polegar embaixo dos demais dedos, durante o almoço, como quando era criança. Aliás, um hábito que, vez por outra, assoma e me reporta ao passado, já distante.

Esses, com certeza, são desvios momentâneos, que iluminam nosso dia a dia.

Sua fonte é recuada no tempo e só faz bem à alma.

Saiba mais sobre alguns desvios:









segunda-feira, 6 de outubro de 2008



O RETORNO DOS DESGARRADOS

Nada como dar uma esticada até o Nordeste, não é?

Pois os jovenzinhos saíram, como sempre fazem, em busca de alimento. Só que as águas estavam tão quentinhas, e tão repletas de comida, que ficou difícil resistir à tentação de esticar mais um pouquinho a viagem anual que realizam.

Aqueles mais afoitos acabaram morrendo lá pras bandas de Sergipe e do Espírito Santo. Mas, os que permaneceram pela Bahia, foram mais sortudos. Eles bem que quiseram deixá-la, mas a Bahia com seu encanto, seu axé, seu mar piscoso, não os deixou sair.

E lá ficaram eles: brincando em suas águas. Dizem que foram vistos. Denunciada sua presença, foram capturados, com toda a garantia de sua integridade física. Após, embarcados em avião da FAB num voo de Salvador até Pelotas. Aqui, no Estado, serão acomodados em um caminhão refrigerado e levados ao Centro de Recuperação de Animais Marinhos (CRAM), em Rio Grande. Nesse local, serão tratados e, posteriormente, liberados para voltarem ao lar: as colônias do Sul da Argentina (Patagônia) e do Chile. A soltura dos animais no oceano tem o apoio da Petrobrás e do Exército.

Lá, então, darão continuidade à espécie.

Que coisa maravilhosa! Perder-se e ter gente sempre atenta a guiá-los de novo ao lar. Gente que se preocupa com os animais.

Pois, os pinguins-de-magalhães voltaram para casa.

Agora, o que preocupa é o indivíduo que pediu para voltar ao Presídio Central. Embora até tivesse conseguido um trabalho, estava foragido. Portanto, precisava cumprir a pena imposta. Daí, sua decisão de retornar.

Pelo que disse, andava passando fome. Então, resolveu entregar-se, cumprir a pena para, depois, voltar a trabalhar.

Considerando-se a atitude sensata do condenado, paira a preocupação acerca de seu retorno ao Central.

Imaginando-se aquele local como provisório, está ele muito longe de ser aquilo que representou o Centro de Recuperação de Animais Marinhos para os pinguins: a morada ideal para alguém se recuperar. Pelo contrário, segundo manifestação do Exmo. Senhor Juiz, responsável pela Fiscalização de Presídios na Região Metropolitana, as condições do Central deixaram-no, quando de sua visita ao estabelecimento, perplexo e envergonhado de ser gaúcho.

Portanto, quando de lá sair, o cidadão referido não estará recuperado. E a sociedade, que o espera, não tem com ele compromisso algum de ajudá-lo na busca de emprego e de melhores condições.

Talvez o problema seja mais complexo que o dos pinguins. Jogá-los ao mar, próximo à sua região de origem, é o bastante. Eles viram-se sozinhos. E, em suas colônias, sabem proteger-se dos demais predadores. Afinal, podem contar com os da sua espécie.

Parece que não é o que acontece conosco. Somos predadores de nós mesmos.

Precisamos, na verdade, aprender mais com os animais.

Já imaginaram? Se nós, os humanos, colocássemos todo o nosso potencial construtivo e de solidariedade em favor dos da nossa espécie?

Infelizmente, o acolhimento dos pinguins, tanto por nós, quanto pelos de sua espécie, causa inveja!


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