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quarta-feira, 28 de maio de 2014

PERENE ALIMENTO


Onde será que ela despeja toda a sua luz durante o dia?

Acho que para ela não existe dia. Só na escuridão é que desfila seu esplendor. Por isso busca, noturnamente, mostrar-se nua, prenhe de tempos em tempos, mirrada em outras vezes. Porém, sempre poderosa. Perfeita no seu comando, norteando mares e marés, norteando amores e dores.

Ao se deixar fecundar, vai-se avolumando, noite após noite, desfrutando de olhares sequiosos de sua beleza, parecendo uma dama da noite que se perde no infinito, por vezes.

Não se perde, porém, da sua função primordial que é encantar, seduzir. Quando reaparece, suas formas vão tomando corpo e aí é que mostra toda a sua força. Ela é profundamente diferente de nós mulheres. Quanto mais volumosa, mais atraente, mais desejada. Dessa forma plena é que seus amantes a querem cada vez mais. Sob sua luz, serve ela de repositório a juras de amor.

Quando vai emagrecendo, porém, perde muito de seu poder. É como se na passarela do infinito, só tivesse vez quando estivesse bem redonda. Quanto mais redonda, mais presença, mais assistência, mais luz.

Enamorada dela, sinto-me profundamente recompensada quando a vejo nua, totalmente redonda, sobre minha cama iluminando meus sonhos. Despejando sua beleza toda sobre mim, aguardo, a cada passagem sua, que meus sonhos aconteçam de verdade. Que eu possa tornar-me tão bela quanto ela e tão generosa no doar-se a quem busca por mim.

Contrapondo Pablo Neruda em seu Livro das Perguntas, em que lança a frase:

- Onde deixou a lua cheia seu noturno saco de farinha?

Eu respondo que a lua cheia despeja seu noturno saco de luz sobre nós todos, abastecendo, com seu perene alimento, nossos sonhos pelos tempos afora.

Um alimento que necessita do silêncio para que melhor a apreciemos.

Aquele silêncio captado por quem se detém a olhar o céu que, mesmo durante o temporal, oferece momentos de profundo vazio de sons. Treinar os ouvidos e ser capaz de captar o silêncio e dentro dele o mais leve balançar das folhas ao vento.

Daí em diante, todo o som será apreciado com ouvidos seletivos e prontos para qualquer mudança nas cadências que o acompanham. E isso é saudável.

Há quem, porém, diante de um verdadeiro tsunami de sons que nos cercam, não resista e procure afastar-se, levando consigo a fé de que “a onda passará”, como diz a letra da música  A Força do Silêncio de Humberto Gessinger e Duca Leindecker.

Há pessoas, com as quais tenho conversado, que têm dispensado, com certa frequência, os jornais televisivos, que são sobremaneira importantes, sob o argumento da necessidade “do silêncio” de quem não quer ouvir de forma diária e constante um tsunami, neste caso, de desgraças, de desastres, de matanças. Têm optado pelo silêncio. Aquele que Quintana enalteceu como sendo O DOCE CONVÍVIO. Escreveu ele:

Teus silêncios são pausas musicais.


E a lua?

A lua agradece. Sobrará mais tempo para ela. Sobrarão mais momentos para desfrutarmos do seu olhar noturno sobre nós, como disse Quintana:

Atenção! O luar está filmando...

Afirmação essa, dirão, que só pode ter nascido de um poeta. Claro, que sim. Quintana, novamente, confirma a importância dela, a lua, sobre os poetas, quando escreve:

Digam o que disserem, mas a lua continua sendo o LSD dos poetas.

Eu diria que, para quem treinou o olhar para buscar o belo, ela faz parte do universo particular desse observador. E ao ler Quintana em outro epigrama, que faz parte do seu Caderno H, encontro a resposta para tal encanto. Sob o título NÓS OS ESTELARES, escreveu:

Esses que vivem religiosamente se embasbacando ante o espetáculo das inatingíveis estrelas – nunca lhes terá ocorrido acaso que também fazem parte da Via Láctea?

Pois é, ela também é inatingível, mas somos, todos, dela vizinhos, vivemos no mesmo espaço e, sempre que podemos, nos visitamos. No meu caso, é uma visita de olhares que, embora distantes, adentram a minha privacidade quando pousam sobre minha cama.  Nessas oportunidades, ela saúda nossa cumplicidade, desviando o olhar, por vezes, enrubescida.

E diante da minha surpresa, um piscar percebo, saudando essa tão antiga amizade.


É! Ela é perene.

Alimenta meu espírito e ilumina os cantos escuros da minha caminhada.

E é no silêncio de um olhar que sempre nos comunicamos.





Era – Divano



A Força do Silêncio - Pouca Vogal



Luar (A Gente Precisa Ver o Luar) - Gilberto Gil 


No Lombo do Luar - Os Monarcas


 

quinta-feira, 13 de junho de 2013


DIÁRIO DE UM POETA


O que é um diário?

Marina Colasanti, em seu livro Uma Nova Mulher, indaga se um diário seria um amigo ou uma companhia. Também é isso. E acrescenta a autora:

“Mas é, sobretudo, uma duplicação da gente mesma, espelho que não se apaga quando o rosto se retrai ou muda, álbum de retratos que conserva muito mais que um belo sorriso e a paisagem ao fundo”. E ela prossegue descrevendo os benefícios de um diário.

“A verdade é que um diário não pode ser lido por ninguém, a não ser pelo autor. E só será válido se escrito despreocupadamente, as coisas ditas às claras, sem metáforas ou jogos verbais criados para encobrir verdades a olhos curiosos.”


Agora, para José Saramago, em Cadernos de Lanzarote, a definição para diário é a que segue:

“Por muito que se diga, um diário não é um confessionário, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse chegar mesmo a ser um romance se a função da sua única personagem não fosse a de encobrir a pessoa do autor, servir-lhe de disfarce, de parapeito. Tanto no que declara como no que reserva, só aparentemente é que ela coincide com ele. De um diário se pode dizer que a parte protege o todo, o simples oculta o complexo. O rosto mostrado pergunta dissimuladamente: Sabeis quem sou?, e não só não espera resposta, como não está a pensar em dá-la.”

Para um poeta a definição acima é bastante adequada. É o que se depreende da leitura do poema/letra, de autoria de Chico Buarque de Holanda, Querido Diário, uma das músicas de seu mais novo CD.

Após ler inúmeras interpretações acerca da letra, desde aquelas que, ainda, vislumbram um viés político, àquelas outras que depreciam o poeta/compositor, colocando-o ao rés da mediocridade e sob o peso da decrepitude, filio-me àqueles outros que o enxergam como alguém que ainda acrescenta qualidade às letras da nossa música popular brasileira.

E por que esse alvoroço?

Porque o autor da letra usou, no décimo segundo verso, a expressão:

-“Amar uma mulher sem orifício”.

Valendo-me do conceito de Saramago, o tal diário do Chico, com seus versos metafóricos, aparentemente simples em seu conteúdo, ocultaria o complexo, protegeria o todo através das verdades ditas a conta-gotas. E a ele, autor, não interessaria se estão a entender ou não. O que quer é jorrar verdades que, com certeza, espelham nossas próprias dificuldades. Principalmente, quando a idade chega inexoravelmente, mostrando a cara sem enfeites. Porém, para um poeta isso ainda será mote para muita poesia. E é o que fez Chico, como sempre, de forma magistral, possibilitando interpretações diversas. E é isso que universaliza o texto, que o torna por demais humano, pois se amolda a qualquer um de nós.

À semelhança de uma quadra, construída em 5 estrofes de 4 versos cada, com rima alternada, vai sobrepondo imagens de uma realidade que se apresenta a cada dia (observe a expressão “Hoje”, usada repetidamente), exigindo-lhe uma reflexão diária , o que em nada o desmotiva ou arrefece o seu ímpeto de luta, quando afirma, quase num tom desafiador: “Mas eu não quebro”.

Constata, inicialmente, que seus conhecidos expressam um sentimento de pena, quando o encontram, por percebê-lo vivendo em solidão.

Arrastado pela cidade afora, vai, como todos, de roldão. Na volta para casa, porém, recolhe um cão de rua. Dar-lhe-á afeto? Receberá afeto? Não sabe, ainda. Logo depois, constata que esse ser lhe arranca um pedaço, de quando em quando. É! O amor é um sentimento que dá e exige. Talvez o olhar desse cão reforce mais ainda a constatação da solidão que o cerca. Com humanos, porém, o convívio é bem mais trabalhoso.

Busca, na caminhada, algo que lhe inspire ao sacrifício. Ter, quem sabe, uma religião a professar, com todos os seus símbolos, mártires e santos protetores. Quem sabe amar uma mulher sem orifício? Uma santa?

Não, acho que não é por aí. O autor também não acredita que esse seja o caminho.

Tanto que, de repente, afinal, conhece o amor. Constata, porém, que esse tal amor é difícil de entender. É, na verdade, uma obscura trama, como diz.

Chico, que dizem ser um grande conhecedor do universo feminino, em entrevista, transcrita abaixo, diz ser um desconhecedor do sexo dito frágil. Acredito nessa assertiva.

Ele não consegue entender, porque sem nunca bater nela (mulher) nem com uma flor, se ela vier a chorar, seu desejo, sua libido aflorará. Essa tal libido acordará, quando ele, ao vê-la chorar, pensar em protegê-la. Serão necessários gatilhos mais contundentes, de ora em diante, para tal despertar?

De qualquer maneira, quando o inimigo (?) (libido- porrete- símbolo fálico) vier espreitar, armando tocaia “pra mó de lhe quebrar”, vai avisando que não se quebra fácil, no máximo irá vergar-se. Porque é macio, viu? Não se desespera o poeta frente à incapacidade momentânea.

Pois o poeta, esse homem frente à solidão e às inúmeras carências que vão se somando à idade, busca alento, refúgio, companhia na figura de um cão que o afague com o olhar, de uma religião que o ampare ou de uma mulher sem orifício que, quem sabe, seja a solução.



Porém, encontra, ao final, aquela que o transforma. Aquela que lhe inflama o desejo.

Mas, digo eu, muito provavelmente, terá essa nova parceira que acompanhá-lo nas suas incertas e imprevisíveis investidas. Isso, se tiver orifício. Caso não tenha, até que seria uma solução. Depois de certo tempo de vida, o que interessa mesmo, para ambos, é o companheirismo, a amizade, a cumplicidade, o carinho, o zelo.

Talvez, finalmente, Chico passe a entender as mulheres.

Pois é, dentre tantas interpretações, essa é apenas mais uma.

VIU?

 
 

Ah! Ia esquecendo:

Para aqueles que criticaram o autor pela pobreza da rima sacrifício/orifício, acredito ser absolutamente ajustada. Tenho para mim que esse casal de Adão e Eva vai ter que encontrar outro “approach”, porque esse já se esgotou. Depois de certo tempo na estrada, alguns prazeres passam a ser um problema, quase um sacrifício.

 
 
 
 
 
Bastidores da gravação da música Querido Diário - Chico Buarque 
 
 
 Chico Buarque e a Internet – Velho e Bêbado
 
 
 
Chico Buarque – o desconhecedor de mulheres 
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 12 de novembro de 2011











O ENCANTO QUE SE RENOVA


A imagem trago na retina.

A menininha se esgueira por entre as prateleiras e logo surge com um livro infantil. Senta-se no degrau que havia na antiga Livraria do Globo, entrada pela Rua José Montaury, bem no meio da loja.

Sofregamente, começa a leitura, virando as folhas com relativa rapidez. Por vezes, se detém em uma ou outra página, olhando com atenção as gravuras que acompanham a história. Já sabe ler. É um encanto vê-la absorta daquela maneira. Bem antes que eu faça as compras necessárias, lá está, novamente, ela com outro livro. Eu que também pretendia comprar algum livro para ela, nem sei mais qual devo adquirir. Aqueles já lidos, não há mais interesse. Então, juntas, eu e minha filha, escolhemos outro para ler “em casa”.

Assim é que se criam leitores: oportunizando-se o acesso aos livros.

Agora, lá pela década de 30, em Santa Maria, a avó dessa menininha já possuía o amor pela leitura. Embora tivesse apenas frequentado as séries iniciais do Curso Primário, teve acesso, à época, a uma biblioteca pertencente a um famoso médico da cidade.

Junto à janela, sob a luz do luar (a energia elétrica andava racionada), pois só dispunha da noite para desfrutar desse prazer, ela, que criava os irmãos mais jovens, pois a mãe falecera precocemente, leu obras universais. SONIA OU O CALVÁRIO DO POVO RUSSO, romance em fascículos, de Ivan Kossorowsky, versão portuguesa de Alfredo Castro, foi apenas uma delas.

Eu, que vim bem depois, fui registrada com o nome de Sonia, em razão do nome da heroína do referido romance.

Os livros têm uma enorme importância em nossa vida.

Anos mais tarde, já frequentando o Curso de Letras, tive que ler inúmeros livros. Autores brasileiros e portugueses foram revisitados por nós, alunos, ao longo do curso. E nesse período, minha mãe, que se acostumara a ler por prazer, manteve essa necessidade ao longo de toda a minha graduação. Lembro, com clareza, dela lendo, por inteiro, livros como o Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e tantos outros autores nacionais e também portugueses.

Que magia há por trás do ato de ler!

Abeberar-se no texto, jogar-se com o autor, de cabeça, nas paisagens descritas, nas cenas comoventes, ver-se desnudo, de repente, a partir de traços psicológicos desenvolvidos pelos personagens, é uma experiência indescritível. Deparar-se com trechos que aguçam nossos sentidos, que nos levam a sentir aromas, cheiros, calor ou frio, a quase enxergar ou ouvir, tal a força da descrição, é muito prazeroso.

A palavra é o instrumento que nos diferencia: que nos faz humanos. Apenas nós temos esse privilégio. Podemos expressar, através dela, todos os nossos sentimentos, sejam quais forem eles. O nosso balbucio prepara-nos para a expressão maior: a articulação de palavras que comporão nosso arsenal no ato da comunicação interpessoal.

Mais tarde, se mantivermos um contato amiúde, o mais cedo possível, com a palavra escrita, sentiremos prazer no ato de ler. E quem sabe, alguns se tornem até escritores. Se essa vocação não se fizer presente, restará, sem dúvida, o amor pela leitura. E, com certeza, uma maior capacitação no ato da escrita.




Alice, só torna-se ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS a partir do momento em que ouve a irmã lendo um livro, adormece e sonha. O buraco profundo, onde cai, a leva a um local mágico onde tudo é possível acontecer. A história termina com o acordar de Alice, descobrindo ter sido tudo um sonho. Lá, nas profundezas da nossa mente, estão abrigados todos os nossos sonhos.

O PEQUENO PRÍNCIPE sabe que “num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo”. Utilizando-se dessa assertiva, acreditamos que aquela pessoa, que se acostumou a privar com os livros, terá neles um amigo constante que, muitas vezes, poderá substituir um amigo de carne e osso. Isso está bem claro no comportamento daquela jovem da década de 30, ávida de leituras, carente de tempo, de amigos, de futuro. Afinal, era preciso voar, mesmo que em sonhos: libertar-se.

Ainda lembrando a raposa, de O PEQUENO PRÍNCIPE, diz ela que “o essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. Sabemos que o início do desenvolvimento intelectual de uma criança é muito delicado. Ela captará pela palavra, pelas gravuras, pelos desenhos, a magia do texto, que é invisível, mas que lhe possibilitará ver com o coração.

Em GRANDE SERTÃO: VEREDAS, Riobaldo diz, a certa altura, “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”

No fio condutor do tempo, com as leituras que se sucederem, teremos essa comprovação. E assim, conforme vamos nos definindo, e isso parece não ter fim, assim também vamos, através das leituras de livros, nos modificando a cada nova compreensão que obtemos, a cada releitura.

E nesse moto-contínuo, aprendemos a tarefa de “criar laços”. Com quem? Com os livros, pois neles está a nossa necessidade maior, que é abastecer nosso ser com o que de melhor nós, humanos, dispomos: nossa capacidade de criar. Criar novas realidades, recriar o que já existe, descobrir-se e redescobrir-se a cada nova leitura.

E essa tarefa, com certeza, começa desde cedo.

Preservemos o encantamento com a palavra, com os livros, com nossas humanas histórias.

Que esse encanto se renove a cada olhar deitado sobre as páginas de um livro: uma possibilidade renovada de um novo olhar sobre as coisas, sobre as gentes do mundo. Que ele nos auxilie na busca de nós mesmos e no encontro do conhecimento.


E a imagem da menininha, surgindo com um livro na mão, volta uma vez mais.

E eu, novamente, suspendo a cena no olhar e saúdo os livros e os eventos que os consagram.