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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

TAREFA INDELEGÁVEL


Aquela menininha que ouvia o bater de folhas secas, caídas das árvores, sobre um chão batido e que formava figuras quando olhava o passeio das nuvens no céu, só pode, hoje, encantar-se com imagens como as que seguem:
Que no céu só vi tudo quieto, só um moído de nuvens (...) e tantas cordas de chuvas esfriavam as cacundas daquela serra.
Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com as mãos de azul.
O luar que põe a noite inchada.
Saí de lá aos grandes cantos, tempo de verde no coração, numa alegria feito nuvem de abelhas em flor de araçá.
Me lembrei da luzinha de meio mel, no demorar de olhares dela, (...) a docicez da voz, os olhos tão em sonhos.
                
(Trechos da obra GRANDE SERTÃO VEREDAS de João Guimarães Rosa)

Ou, quem sabe:
É uma sombra verde, macia e vã.
                                                        (Carlos Drummond de Andrade)

Ou, ainda:
Nasce a manhã, a luz tem cheiro... Ei-la que assoma
Pelo ar sutil... Tem cheiro a luz, a manhã nasce...
Oh! Sonora audição colorida do aroma!
                                                          (Alphonsus de Guimaraens)

Ou, também:
A noite dorme um sono entrecortado, alfinetado de grilos.
Há sempre, afastada das outras, uma nuvenzinha preguiçosa que ficou sesteando no azul.
As águas riem como raparigas
À sombra verde-azul das samambaias.
                                                 (CADERNO H – Mario Quintana)
                        
Essas são imagens ligadas à Natureza descritas não apenas por poetas, mas por escritores que usam da infinita possibilidade que ela oferece a quem se detém a observá-la.
Mas será que hoje, ainda, será possível manter-se essa capacidade de observação diante do uso da Internet, quase que dia e noite?
Já Quintana escrevera em seu CADERNO H, sob o título O MUNDO, o seguinte:
A coisa começou desde os dias já remotos da invenção do telégrafo. Depois foi o TSF, o rádio, a TV, etc. E o Tempo, atônito, engolindo o Espaço. E esse vasto mundo diminuindo, diminuindo, diminuindo... até se vir esconder covardemente dentro do nosso quarto.
E para piorar, quando esse jovem sai do quarto, o que encontra pelo caminho, no bairro onde mora? Lixo espalhado, árvores que teimam em sobreviver, seres humanos atirados pelas calçadas a dormir o sono dos anestesiados pela fome, pela droga, pelo desamparo, pelo “nem aí” do coletivo que desvia, sem muito olhar.
À noite, o céu ficou reduzido a faixas entre um edifício e outro. E ela, a noite, está perigosa, muito perigosa. Sentar na calçada é coisa de antigamente. A coisa de hoje é trancar-se dentro de casa, de preferência no quarto, em frente à Internet. Mas existe muito mais além dessa tela.
Existem:
Uma rãzinha verde no gris da manhã...
Um sorriso na face de um ceguinho...
Uma nota aguda como uma pergunta de criança...
Um cheiro agradecido de terra molhada...
Um olhar que nos enche subitamente de azul...
                                                         (COISAS – CADERNO H)

E, também, muito tempo atrás:
Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio de parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.
                                                          (TEMPO PERDIDO – CADERNO H)

E, ainda, Quintana:
Aprendi a escrever lendo, da mesma forma que se aprende a falar ouvindo. Naturalmente, quase sem querer, numa espécie de método subliminar. Em meus tempos de criança, era aquela encantação. Lia-se continuamente e avidamente um mundaréu de histórias (e não estórias) principalmente as do Tico-Tico. Mas lia-se corrido, isto é, frase após frase, do princípio ao fim.
Ora, as crianças de hoje não se acostumam a ler correntemente, porque apenas olham as figuras dessas histórias em quadrinhos, cujo “texto” se limita a simples frases interjetivas e assim mesmo muitas vezes incorretas. No fundo, uma fraseologia de guinchos e uivos, uma subliteratura de homem das cavernas.
Exagerei? Bem feito! Mas se essas crianças, coitadas, nunca adquiriram o hábito da leitura, como saberão um dia escrever?
                         (O QUE ACONTECE COM AS CRIANÇAS - CADERNO H)

Competiria aos pais dessas crianças, não a nós, incutir-lhes o hábito das boas leituras. Ora essa! Mas se eles também não leem... Vivem eternamente barbiturizados pelas novelas da Televisão.
                     (O QUE ACONTECE COM OS PAIS – CADERNO H)


Mas o que tem isso a ver com a tela do computador, com o acesso ilimitado a todos os sites possíveis, durante um tempo ilimitado, sob um bombardeamento de assuntos, propagandas, mensagens subliminares e por aí?
Pois a questão de fundo é mais grave do que se pensa.
E aqui chegamos ao excelente livro de Nicholas Carr, traduzido para o português, em dezembro de 2011, com o título A Geração Superficial: o que a Internet está fazendo com os nossos cérebros. Vale a pena lê-lo. É um livro de grande profundidade onde Carr analisa as influências negativas que a Internet exerce sobre quem a usa.
Na obra, Carr comprova, por experiência própria, a considerável diminuição da sua capacidade de concentração e contemplação. Ele próprio afirma que estava se tornando incapaz de prestar atenção a uma coisa por mais do que uns poucos minutos. Conforme narra em seu livro:
“Comecei a perceber que a net estava exercendo uma influência muito mais forte e mais ampla sobre mim do que o meu velho PC solitário jamais tinha sido capaz. Não era apenas que eu estava despendendo muito mais tempo defronte a uma tela de computador. Não era apenas que tantos dos meus hábitos e rotinas estavam mudando porque me tornei mais acostumado com, e dependente dos, sites e serviços da net. O próprio modo como o meu cérebro funcionava parecia estar mudando. Foi então que comecei a me preocupar com a minha incapacidade de prestar atenção a uma coisa por mais do que uns poucos minutos. Primeiramente tinha imaginado que o problema era um sintoma de deterioração mental da meia-idade. Mas o meu cérebro, percebi, não estava apenas se distraindo. Estava faminto. Estava exigindo ser alimentado do modo como a net o alimenta – e, quanto mais era alimentado, mais faminto se tornava. Mesmo quando eu estava longe do meu computador, ansiava por checar meus e-mails, clicar em links, fazer uma busca no Google. Queria estar conectado. Assim como o Word da Microsoft havia me transformado em um processador de texto de carne e osso, a Internet, eu sentia, havia me transformado em algo como uma máquina de processamento de dados de alta velocidade, um HAL humano”. (p.31 do citado livro)

O autor do livro destaca, segundo sua própria experiência, vários efeitos que a Internet ocasiona em quem dela faz uso constante. Entre tantos, ressalta a distração do usuário, a alteração da sua estrutura cerebral, a modificação na maneira de pensar e agir, bem como a perda do autocontrole e da calma interior. A partir dessas conclusões, teríamos uma leitura descuidada, um aprendizado superficial e o cultivo de um pensamento distraído e apressado.
A Internet, conforme estudos, cerca-nos de estímulos sensoriais e cognitivos intensos, repetidamente, de forma interativa e aditiva, levando-nos à condição de um viciado, sofrendo esse intensas e rápidas alterações dos circuitos e funções cerebrais.
Com isso, estamos perdendo a capacidade de ler profundamente.
Jakob Nielsen, dinamarquês, cientista da computação com PhD em interação homem-máquina, já em 1997, afirmara que os usuários da web não leem. E isso seria, segundo Carr, uma involução da civilização, pois estaríamos passando da condição de cultivadores de conhecimento pessoal para os ancestrais caçadores e coletores da floresta dos dados eletrônicos. (p.192 do citado livro)
Se a web consegue fragmentar nossos pensamentos, desconcentrar-nos, levando-nos a perder o foco, ou melhor, pulverizando-o para multitarefas, o que acarretará uma diminuição na capacidade de pensar e raciocinar sobre uma questão, perderemos a originalidade e a possibilidade criativa de um cérebro livre, não dominado.
E ao que parece ninguém está muito interessado em uma leitura vagarosa, num pensamento concentrado. O negócio, que é um negócio, é mesmo a distração dirigida aos produtos que estão em oferta no mercado para serem vendidos e consumidos.
E isso compromete a cultura, pois ela não pode ser volátil e sim renovada nas mentes daqueles seres que compõem cada geração.
Carr, ainda afirma, na página 293 do citado livro:
“Quando alguém escavando valas troca a sua pá por uma escavadeira, os músculos dos seus braços se enfraquecem mesmo que a sua eficiência aumente. Uma troca semelhante pode acontecer ao automatizarmos o trabalho da mente.”

E, mais adiante, ainda afirma na página 299, que experimentos indicam que quanto mais distraídos nos tornamos, menos aptos somos a experimentar as formas mais sutis, mais distintamente humanas, de empatia, compaixão e outras emoções. Seria precipitado concluir que a Internet está solapando nosso senso moral. Não seria precipitado sugerir que, à medida que a net está fazendo o roteamento dos nossos caminhos vitais e diminuindo a nossa capacidade de contemplação, está alterando a profundidade de nossas emoções, assim como de nossos pensamentos.
.
E, na página 301, finaliza citando Martin Heidegger, filósofo alemão que, já na década de 50, observara que:
“A onda de revolução tecnológica iminente poderia cativar, enfeitiçar, deslumbrar e distrair de tal forma o homem que o pensamento calculista poderia um dia vir a ser aceito e praticado como o único modo de pensar. A nossa capacidade de engajamento no pensamento meditativo, que ele via como a essência mesma de nossa humanidade, poderia se tornar vítima de um progresso desenfreado. O avanço tumultuado da tecnologia poderia abafar as percepções, pensamentos e emoções refinados que somente surgem com a contemplação e a reflexão.”

A constatação de Carr, ao sentir-se como uma máquina de processamento de dados de alta velocidade, corrobora estudos que conduzem à conclusão de que seus usuários constantes, alvos de estímulos sensoriais e cognitivos intensos, são levados à condição de viciados.
Ao que parece, por aqui, já começaram a surgir casos de drogadição por uso constante da Internet, como demonstra a reportagem do Jornal Zero Hora, de 02 de fevereiro de 2014, juntada abaixo. Nela, a psicóloga, que atende a paciente, afirma que no processo de reabilitação os sintomas são os mesmos de um viciado em drogas.
Então, meus caros, trabalhos como o citado na crônica ATÉ QUE ENFIM..., publicada em 19/10/13, são de vital importância para a manutenção, no ser humano, daquilo que lhe é próprio. A capacidade de expressar em palavras o sentimento que se instala pela junção de todos os sentidos convergidos, transpondo para o papel todo um poder de contemplação, de observação, de ligação entre o eu e o outro, entre o eu e a Natureza. Nada virtual. Tudo bem real.
Chuva é uma gota que cai do céu.
Paz é quando a gente fica quieto. Daí conseguimos escutar a paz.
                                    (trabalhos de alunos de escolas da Capital, inseridos numa Amostra de W. Carol, artista plástica). 

Uma iniciativa de grande valor.
Ah! Levem suas crianças para os parques, para locais onde possam manter contato com a Natureza. Isso será de grande valia para elas e seus descendentes.
Portanto, crianças, saiam do quarto, façam o contrário do descrito por Quintana em seu O MUNDO, transcrito acima.
E, uma vez mais, Quintana:
As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas... Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada.
                                                 (NADA SOBROU – CADERNO H)

Sendo assim, Quintana, novamente, estava certo, quando escreveu:
O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
                                                  (A ARTE DE LER – CADERNO H)

É! A menininha, que ouvia as folhas secas caírem, concorda com Nicholas Carr, integralmente: contemplação e reflexão ainda são fundamentais. A máquina é APENAS uma ferramenta a nos auxiliar. O ser humano e a Natureza, caminhando juntos, evoluirão de forma gradual e sustentável. A tecnologia deverá ser mantida e garantida como uma conquista do homem, mas não levada a causar-lhe uma gradual deterioração da sua capacidade de pensar, de refletir, e, principalmente, de sentir, de emocionar-se, de criar afetos.
Convenhamos, máquinas não sentem.
E, muito menos, apaixonam-se.
Deixem essa tarefa para os humanos, pois nisso são competentes criadores e criaturas.
Não esqueçam, porém, de manter viva a criança interior. Imaginem-se...
Pegando carona na cauda de um cometa
Indo ver a Via Láctea
Estrada tão bonita...
                                           LINDO BALÃO AZUL (GUILHERME ARANTES)
 
Boa audição!

Lindo Balão Azul – Guilherme Arantes
 
Reportagem ZH – Dia 02/02/14 – p.30 – SEM DESCONECTAR


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Maria Odila Menezes escreveu:
Com certeza, Soninha!" Sentar na calçada é coisa de antigamente." Adorei tua crônica!!!Bjs