domingo, 8 de março de 2020

O RESGATE


De repente, acorda banhada em suor. A origem de tanto terror vai-se lentamente. Percebe que está na sua cama. Estivera sonhando. Com os pensamentos ainda meio embaralhados, respira mais tranquila. Fora um sonho, nada mais. Esse resgate, do qual foi protagonista, ainda restaria por muito tempo a assombrá-la. E se ele houvesse fracassado? Se, naquela manhã, as peças envolvidas não se tivessem encaixado? Se surgisse algum contratempo? Se o chefe da família tivesse retornado ao lar, por qualquer motivo? Nada poderia dar errado. E, de fato, não deu.

Segundo relato da mãe, a partir do quinto dia de união, pelo casamento, começara um verdadeiro calvário. Beatriz acreditava na mãe. Não tinha motivo para desacreditar. Passara com ela, até aquela manhã, vários momentos traumáticos. E, porque não dizer, um cotidiano de sobressaltos que para sua mãe se arrastou por trinta e poucos anos. Na verdade, viviam sob o tacão de um tirano.

Para que se pudesse romper aquela situação instalada por anos a fio, somente um plano bem elaborado, meticulosamente arquitetado, poderia ser exitoso. A decisão fora tomada após o convívio ter-se tornado insuportável. O diálogo era impensável. As condições psicológicas a que estavam submetidas, há vários anos, reforçavam a ideia de que só havia uma saída. Em prol da sobrevivência física e mental de ambas, a fuga foi traçada.

Nos meses anteriores, os detalhes foram repassados, as devidas cautelas tomadas e os contatos preparados. Pequena quantia em dinheiro também foi guardada. Até uma novena foi rezada para que tudo desse certo. Como dizia sua mãe:

- Um dia, tudo iria terminar.

E foi o que aconteceu naquela manhã, já remota no tempo.

Beatriz saíra para fazer o vestibular. Era o combinado. Porém, fora encontrar-se com o tio. Diante do pedido já aguardado, ele apenas sinalizou sua concordância, aceitando acolhê-las: sua irmã e Beatriz, sua sobrinha e afilhada.

Os momentos que se sucederam foram de absoluta tensão, numa corrida contra o tempo, sob a sombra do medo e do imprevisível: sempre possível.

Beatriz, à frente, sozinha, tomou, passo a passo, as medidas que a ela, do alto de sua recém-completada maioridade, pareceram necessárias naquele momento.

Arranjou um pequeno caminhãozinho que carregaria alguns pertences. Aboletou-se na cabine com o motorista e rumou para o local do resgate. Antes, porém, passou na delegacia do bairro, onde pediu auxílio de uma viatura que a acompanhasse para qualquer eventualidade. Foi atendida prontamente.

Os vizinhos que assistiram à cena da chegada do caminhão e da viatura não conseguiam compreender o que estava acontecendo. E assim permaneceram. Para que revelar detalhes, agora, se nunca antes tinham tido eles qualquer participação. Quando um deles adiantou-se para saber o que determinara tal atitude, aparentando interesse, não obteve resposta.

Do local, foram retirados apenas um pequeno refrigerador, uma velha máquina de costura Singer, uma pequena máquina de escrever, semiportátil, Remington, uma cama de solteiro, um pequeno roupeiro, livros e roupas.

Aquele local, um bangalô tão ajeitado, com carro na garagem, com um jardim florido, com bastante conforto, ficou praticamente intacto. Nas janelas, cortinas penduradas atestavam o zelo de quem as cuidava. No jardim, uma gruta, construída pela mãe, guardava a imagem de Nossa Senhora Aparecida. De lá, a Madona a tudo assistiu.

Sobre a mesa da cozinha, ficou servida a última refeição: um prato de aveia, tão ao gosto do chefe da família.

Ainda, para encerrar esse penoso convívio, uma carta, escrita pela filha, foi deixada sobre a mesa da sala.

Das chaves Beatriz não lembra bem. Parece que foram colocadas sob o tapete da porta de entrada. O portão com o vento fechou-se sozinho.

A Madona parecia sorrir, é o que lembra Beatriz.

Completava-se o resgate de duas vidas.





Nota: Uma homenagem a todas as mulheres que ousam libertar-se do jugo machista que, quando imposto, causa tanto sofrimento.





Observação: Conto selecionado que integrou a Antologia Literária TODAS AS MULHERES DO MUNDO, publicada pela Editora Litteris do Rio de Janeiro, no ano de 2017, em comemoração ao Dia da Mulher.








terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

EM BUSCA DA ALEGRIA




Por vezes, apenas alguns passos ritmados, de um lado para o outro. Um olhar que espera, um som que se avoluma aos poucos. Ombros e corpos que se tocam.

De repente, porém, a melodia irrompe com força total e o ritmo da bateria envolve a todos. Os movimentos se sucedem e, freneticamente, todos pulam, dançam e cantam, extravasando a alegria contida.

Ela, a alegria, parece aguardar estes dias de fevereiro para mostrar-se de forma autêntica. Levada pelo desempenho de ritmistas, cantores e passistas, nada parece mais contê-la.

Aliás, todos os participantes, de forma alegre e descontraída, expõem suas opções de vida, bem como a forma, sem preconceitos, como recebem o outro.

A alegria que desfrutam, porém, é momentânea. Um tumulto, no meio da multidão, acende um alerta. Por vezes, o tumulto se esvai contido pelos integrantes dessa massa humana que reage.

Em outras, os trios elétricos, que fazem brotar esta alegria, encerram suas apresentações em face da insegurança observada.

Nem nessa época carnavalesca, é possível essa alegria extravasar. Uma alegria que se desfaz e volta a ser contida por absoluta impossibilidade de existir diante do dia a dia conturbado e inseguro, que teima em nos acompanhar, em todos os horários e lugares por onde circulamos.

É imprescindível que conquistemos uma alegria capaz de se manifestar a qualquer momento, em qualquer lugar, independente de data ou de ambiente.

Somos um povo maravilhoso que clama por ações governamentais que resguardem a liberdade de ir e vir do cidadão, com segurança, e de responsabilização imediata dos transgressores das regras de convivência em sociedade.

O Carnaval, um de nossos patrimônios culturais, deveria ser o momento em que a diversão seria apenas mais um dos motivos para que a alegria se mostrasse.

Daí, sim, valeria a letra da conhecida melodia País Tropical, de Jorge Ben Jor, ser cantada e recantada tantas quantas vezes cada bloco de carnaval desfilasse.

Seus versos nos falam de um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza!

Que beleza seria se a alegria pudesse brotar a todo instante, em cada esquina, em cada encontro.

Depende, antes de tudo, de nós mesmos e da manifestação clara e autêntica do desejo de que mudanças ocorram em nossa sociedade.

Daí, a alegria estará presente: não somente no Carnaval.

Até meu espelho terá uma resposta pronta, lembrando os versos:

Diga espelho meu,

Se há alguém na avenida mais feliz do que eu.

Acrescento eu, com esperança:

Em qualquer avenida, a qualquer hora.





País Tropical - Jorge Ben Jor


País Tropical - Jorge Ben Jor e a Banda do Zé Pretinho


É Hoje - Monobloco  






sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

ELA É VIDA!



Ela nos acompanha desde o nascimento. Ou melhor, até bem antes de abrirmos os olhos para um mundo novo. Nosso corpo é constituído por ela numa proporção de mais de 70%. Então, ela é necessária e bem-vinda. Ela acompanhará todos os momentos que se sucederem ao longo de nossa existência.

Lembro-me do poema que segue. Ele bem expressa essa sua constante presença.


Agora, para que ela nos faça bem e sempre nos acompanhe, temos que tratá-la bem. Ninguém, que é maltratado, responde serenamente.

Assim como em nosso organismo ela faz parceria com outros elementos que o constituem, também, no meio ambiente, ela possui parceiros que podem contribuir para um perfeito equilíbrio entre as forças que regem o planeta. Da mesma forma que tratamos, muitas vezes, o nosso organismo de forma errônea, temos, reiteradamente, falhado na condução desta Terra, que é a nossa casa, mesmo que temporária, e na conservação deste alimento dado graciosamente, indistintamente, para que o desfrutemos. Este alimento necessário, constante e diário: é a água.

Nunca nos preocupamos em cuidá-la, pois parecia inesgotável. Hoje, estamos cientes de que isso é uma inverdade.

Dia 22 de março aproxima-se. É a data em que se comemora o Dia Mundial da Água, instituído pela ONU em 1992.

Em 21 de março de 2013, publiquei a crônica A PRESENÇA DELA É GARANTIA DE VIDA, abordando este assunto. Vale a pena esta leitura.

O que fizemos de lá para cá? Nada.

E o que se aproxima são episódios cada vez mais dramáticos envolvendo as águas, fruto do desequilíbrio das condições climáticas a que estamos sujeitos. Por absoluto descompromisso com o meio ambiente, os níveis de dióxido de carbono (CO2), na atmosfera do planeta, excederam os limites possíveis. Isto está pondo em risco nossa vida por aqui.

O Secretário-Geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, alertou os participantes do Fórum Econômico Mundial, em Davos, que a situação é extremamente preocupante.

O descongelamento das calotas polares com a consequente elevação do nível dos oceanos é algo a ser considerado com urgência.

Até nós já chegaram as inundações, as tempestades, os desastres ambientais com vítimas e prejuízos incalculáveis.

Esperar mais o quê?

Poeticamente, nuvens ameaçadoras podem transformar-se em pequenos oásis acolhedores, como no poema que segue.


Seria bom que toda a água disponível fosse tratada convenientemente, para que se mantivesse a utilidade para a qual existe. Um alimento indispensável para o nosso organismo, para toda a nossa flora e fauna, para todas as nossas culturas agrícolas, para a manutenção de nossos rios e lagos, para nossas usinas hidrelétricas: para uma vida saudável neste planeta.

E, claro, para que, também, sirva de alimento para o espírito, retratando poeticamente uma cachoeira que não para de murmurar. Nos dias atuais, ela está mais a pedir socorro para que permitam que ela continue a existir, pois sua missão é: mostrar-se sempre bela, sempre caudalosa. Lembremos que ela é vida.

É urgente que revertamos este quadro de descaso. Medidas devem ser tomadas. Caso contrário, o poema que segue se tornará uma realidade cada vez mais próxima.

Ela, a água, e a casa que habita sucumbirão. Se assim ocorrer, não mais adiantará pedir perdão, possibilidade, ainda viável, hoje. O poema, que segue, busca uma nova oportunidade. O tempo, porém, urge. Caso contrário, não mais teremos espaço por aqui, pois nosso planeta terá se tornado inabitável.


Acredito, porém, que ainda há tempo.

Afinal, a cada dia, ingressamos, pausadamente, num novo amanhecer. É possível, portanto, que despertemos nossa consciência sobre a necessidade da sobrevivência de todos nós, habitantes deste planeta, em condições de ainda ouvir o barulho das cachoeiras, pois elas são vida.

Agora, se nada for feito, as águas invadirão tudo, destruindo o que forem encontrando. Não serão mais garantia de vida. Tudo porque não cuidamos da Natureza. Esquecemos que as condições climáticas dela fazem parte.

Urge que se tenha esperança na tomada de corretas atitudes, que promovam mudanças, pois serão elas a garantia de um novo tempo.


Lembremos que as chuvas, vindas à medida que a necessidade se apresente, serão sempre uma bênção, pois trazem a água benfazeja.

Agora, se “a chuva” resolver exceder os limites que deve “respeitar”, restará elevar uma prece a Deus para que nos salve.

Em doses poéticas, na letra de CHOVE CHUVA (vídeo abaixo), o autor suplica ao Mestre que pare a chuva, porque ela está a molhar aquele amor, aquele divino amor que o poeta quer salvar.

Lembro-me de outro poema, cujos seis primeiros versos demonstram que, às vezes, água demais não é tão bem-vinda. Pobre planta! 
Não me pedias, mas eu dava.

Dava-te água todos os dias.

Vivias encharcada.

Que mancada!

Quando dei por mim,

Tinhas partido: morrido.

Portanto, considerando o que foi exposto, devemos atentar para a preservação dos mananciais de água disponível, bem como o seu uso adequado por quem se utiliza desse bem.



Chove Chuva - Jorge Ben