quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009



 

MENOS, MEU DONO, MENOS...


Desde o início, ele soubera que aquilo era uma furada. Ele que, por tamanho e conformação dos músculos, permitia-se dar saltos bastante ousados, percebeu, em determinado momento, que seu dono ia acabar se enredando, porque estava ousando demais, além da conta.

E olha que seus bigodes se eriçavam todos, quando seu dono pegava o celular e ia lá pro fundo do quintal a sussurrar coisas, que ele não entendia muito bem, mas que eram respondidas por Severino. Sabia que era Severino do outro lado da linha, porque seu dono repetia esse nome, dizendo coisas tipo: “fica frio”, “não vai dar rolo”, “eu seguro”, “eu entendo do riscado”, e por aí...

Essas conversas constantes ao celular, sempre afastado do pessoal da casa, já estava deixando Dona Josefa, sua dona, desconfiada do marido. Na realidade, andava enciumada, achando que havia outra mulher no pedaço.

Mas fazer o quê? Agora, depois que se tornara funcionário público, era pessoa importante por aquelas bandas. Ainda mais com o cargo que lhe haviam dado. Precisava estar sempre conectado com a repartição.

Mas o bichano sentia que rondava o perigo. A verdade é que as sobras de comida tinham aumentado. Pra quem vivia numa cacaca federal, até que seu dono tinha melhorado. Homem fazedor de dinheiro estava ali! Andava, como se diz, por cima da carne-seca. Na real, o bichano não conseguia entender bem essas coisas que estão sempre a rondar os humanos.

Mas, um dia, algo lhe deixou preocupado. Foi quando ouviu seu nome, numa conversa pelo celular entre seu dono e Severino. Ele, que conhecia aquela família há tantos anos, ouviu seu dono dizer que, pasmem: era um recém-nascido. Ele que até já ia ser pai! Isadora estava por dar à luz.

Alguma coisa estava acontecendo. Ou, ia acontecer. Estacou, atrás do pé de cinamomo, e ficou a ouvir. Seu dono virara um mentiroso, um trambiqueiro?

E parece que, naquela casa, só ele sabia disso. Era a única testemunha, auditiva, daquela armação. Ouviu, durante um bom tempo, toda a conversa.

Começava a entender porque seu dono, de uns tempos pra cá, andava diferente. Já não era o mesmo. Reconheceu, assustado, que seu dono andava ousando demais. O pior de tudo é que, pela conversa dos dois, parecia que ele, o bichano, tinha virado um guri, com sobrenome e tudo. Não estava entendendo mais nada.

O que intrigava é que eram conversas sempre em voz baixa, ao celular, lá nos fundos do terreno. Isso começou a lhe dar nuns nervos. Era mais ou menos como se sentia, quando resolviam fazer faxina na casa: ficava muito nervoso.

Cismado com essa sensação, andava ele mais inquieto que cavalo sarnento. Foi quando, numa tardinha, tornou-se pai. Eram três filhotes ao todo. Dali em diante, pelos próximos meses, nem Isadora e nem Dona Josefa lhe deram mais bola.

Pôde então se concentrar na figura do seu dono. Vivia mais grudado no homem que pepino no baraço. Achava que ele já andava até meio desconfiado. Mas as intenções do bichano eram as melhores.

Por vezes, seu dono estacava o passo, voltava-se e fixava seu olhar naqueles grandes olhos verdes. Parecia que procurava alguma coisa. Nessas horas, o bichano bem que gostaria de aconselhá-lo. Alertá-lo para os perigos de quem não possui a esperteza refinada, a agilidade reconhecida: um DNA fraco para lances tão arriscados.

Mas faltava-lhe o que sobrava em seu dono: uma boa conversa. Assim, sem poder comunicar-se, a não ser com os olhos, o rabo e uns débeis miaus, foi percebendo a cara de preocupação que, a cada dia, seu dono demonstrava. Já sentia que ele andava encrencado como barriga de guri novo.

Até que, numa manhã, bateram à porta. O bichano, já enrodilhado nas pernas de Dona Josefa, foi com ela atender a quem batia. Enquanto se deslocava, sentiu um calafrio a subir-lhe espinha acima. Seria mau presságio? Pois não é que o homem, que batera na porta, viera buscar o guri, recém-registrado no cartório da cidade, com nome igual ao seu, para levá-lo ao Posto de Saúde. Queriam pesá-lo... Imagina!

Ainda bem que Dona Josefa não deixou. Era só o que faltava acontecer com ele! Pensavam que ele era um nenê... Ele, que já era pai!
Aliás, Dona Josefa, coitada, não sabia da falcatrua do marido. Inocentemente, afirmou ali não existir criança alguma com aquele nome, a não ser o seu gato.

Passado o susto e já recolhido ao seu esconderijo, embaixo da casa, Billy entrou em profundas reflexões: o rolo parecia grande.

Então, era verdade? Como pudera seu dono fazer tão desastrada falcatrua? Coisa de amador... Imagina, a coisa poderia ter-se estendido por muito mais tempo. E, talvez, até nem fosse trazida a público. Agora, transformá-lo em um bebê, só poderia ter dado nisso. Se ele já fosse um guri de nove anos, ninguém ia querer levá-lo ao Posto para pesar...

Foi, realmente, uma mancada imperdoável. Todo mundo ali, naquela casa, saiu perdendo. Principalmente seus três novos filhotes, que já poderiam largar, na vida, melhor alimentados. Já seriam uns reais a mais no orçamento da família, considerando-se o novo filho registrado. Um auxiliozinho do Programa Bolsa Família. Mas agora, babaus...

Imagina, se sujar por tão pouco... Se fosse por muito, até valeria a pena. Afinal, parece que quanto maior o rombo, menor o constrangimento. E, também, menor a execração. Os exemplos estão por aí aos montes.

Ele bem que gostaria de ter avisado: menos, meu dono, menos...

Brincadeiras à parte, sete vidas tem o bichano. Seu dono tem apenas uma. E com ela tentou dar uma de “joão-sem-braço”, mas se enrolou mais que carrapicho em cola de cavalo. Acabou mais por baixo que umbigo de cobra e mais sujo que pau de galinheiro.

E pensar que seu dono era um privilegiado naquele mar de miseráveis a sua volta. Que feio!



Leia a notícia.





domingo, 4 de janeiro de 2009

 

UMA QUESTÃO DE PESO


Foi por pouco... Na segunda tentativa, o alvo foi mais ligeiro. A distância do alvo, claro, era considerável. E o peso, ou melhor, a massa do objeto era significativa.

Faltou ao arremessador uma melhor previsão de todos os elementos envolvidos nessa verdadeira “bomba” lançada naquele circo montado. Todos ali, perfeitas marionetes, reunidas, fazendo de conta que estavam a cuidar dos interesses coletivos. Os discursos, podem crer, eram de peso. Repetiam, à exaustão, a mesma cantilena mentirosa, visando aos interesses de castas que não precisam estar presentes. Aliás, nunca aparecem. Mas as marionetes a serviço estavam todas ali. O embuste, a desfaçatez, meus caros, perpetuam-se. As doses é que variam, bem como seu peso ao longo dos séculos.

Voltemos, por instantes, ao objeto arremessado, símbolo ofensivo dos mais significativos. Convenhamos que o arremessador poderia ter escolhido um objeto um pouco menor, com menos massa, com a metade mais ou menos, algo tipo 150 gramas. Seria a vez de a mulher mostrar a sua força, pelo menos para isso... Mas diante de sua condição naquela sociedade, acho até que seria menos ofensivo do que o representante masculino que, claro, deve ter mais valor. Com certeza, o peso ofensivo deve ser maior, sendo um “pisante” masculino.

Quanto ao alvo, considerando sua passagem, na adolescência, pelo Texas, mostrou-se à altura dos velhos heróis do faroeste americano. Sem arma, foi rápido, contando com a sorte, é claro, pois ali os efeitos especiais do cinema não estavam presentes. Mas, de qualquer maneira, desempenhou bem o papel: na tribuna, com um discurso de peso, e ao se esgueirar, com meneios rápidos de corpo.

Os detalhes não foram, previamente, estudados. Portanto, frustrou-se o objetivo final. Frustrou-se?

O gesto permanecerá. O significado, também. A ofensa não será esquecida. Nunca se saberá a real extensão dos desdobramentos para o arremessador. Nem, tampouco, a verdade embutida no gesto. Tudo foi e continua sendo uma questão de peso, na acepção da palavra.

Quanto às castas, continuam rindo à socapa...

Aliás, essas duas últimas expressões datam dos séculos XV e XVI, respectivamente.

Como se pode observar: tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
Outra expressão cunhada nos séculos XVII e XVIII.

Ou, porque não dizer: mudam as moscas...





assista ao ataque:

e ao contra-ataque:








segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O PEDIDO DE VALENTE












Quando Valente dobrou a esquina daquela rua, que conhecia de nome, já sabia o que o aguardava. Meses a fio ouvira aquela conversa. Agora era pra valer! Parece que a coisa se tornara moda. 

O que o assustava é que, se as coisas continuassem assim, perderia até sua principal característica: seu faro. Com certeza, ele iria perder-se em meio a tantos cheiros desconhecidos. Teria que se exercitar, que aprender os novos aromas que se anunciavam. 

Valente avançava, cabisbaixo, rua acima. Nada mais seria como antes. Perderia a espontaneidade pra tudo. Ficaria embaraçado frente a uma parceira. E se ela também adotasse a mesma moda? Até que pra ela era compreensível tal revolução estética. 

Valente, definitivamente, não se conformava com tais modismos. Na verdade, as coisas deviam ficar como sempre tinham sido. Tudo bem definido: cheiros, cores, o visual de cada um no original, de nascença. 

E quando tivesse que levantar a perna? Será que teria alguma mudança? E quando estivesse a fim..., como identificaria a sua cara-metade “da hora”? Será que conseguiria definir o cheiro do prazer, em meio a tantos outros cheiros? Isso, decididamente, não ia dar certo. Ia acabar se confundindo. E daí? Babaus... Ia ser um salve-se quem puder! Por que tinham que inventar tais coisas? 

Enquanto se preparava para o sacrifício, ia meditando sobre os velhos e bons tempos. 

Que saudade daquele quintal, lá no bairro Petrópolis, em que vagava por entre as árvores, tendo sempre ao lado Isadora, sua companheira. Sabia perfeitamente quando ela estava “naqueles dias”. E “aqueles” eram os melhores dias de sua vida. Tudo seguindo o seu curso natural. Nada de inovações. Tudo previsto e instintivamente perseguido. 

Mas aí... Dona Gertrudes, sempre tão carinhosa, um dia, resolveu entregá-lo à Beatriz, sua irmã, que o levou para morar com ela. Sabe onde? Num apartamento. A coisa mais horrorosa! Tinha sido levado para fazer-lhe companhia, pois ela enviuvara há pouco. Desse dia em diante, sua vida começou a mudar. E, para pior. Agora, porém, chegara ao fundo do poço. Sentia que, qualquer dia, acabaria virando Valentina. Com esses pensamentos sombrios, adentrou, a contragosto, na tal casa. Sentia que ali começaria sua derrocada como espécie. 

Uma voz suave convidou-o a entrar: 

- Por aqui, meu fofo! Beatriz voltaria, em três horas, para buscá-lo. 

Dali em diante, viu-se rodeado por mais duas vozes meigas a com ele conversar. E, principalmente, a conversarem entre si. O que se sucedeu, a partir daquele momento, vale uma história e tanto. 

Depois de muita conversa, resolveram iniciar a transformação de forma “light”. Nada muito agressivo! 

Mergulharam-no numa banheira muuuuuuito cheirosa. Com as barbas de molho e o resto também, ficou a meditar por minutos nessa nova vida que se anunciava. Vira e mexe estaria nesse salão de horrores novamente. 

E era shampoo, condicionador... E dê-lhe água. De repente, aquela água foi sumindo para outra ir chegando. E o pobre ali mergulhado. O cheiro agora era bem definido: era de chocolate. Conversaram as moças entre si que era hora da hidratação de chocolate. Pra que tanto cheiro? Pensou com seus botões: isso não vai dar certo... 

Sentindo-se mais lambido que terneiro recém-nascido foi, finalmente, retirado da banheira e levado para o soprador. E depois, claro, para o secador: que são coisas diferentes. 

Daí, partiram para uma boa escovada e mais um spray perfumado, com o qual quase tonteou. Para finalizar, um laçarote cor-de-rosa pra segurar a franja teimosa. E com os olhos, agora, bem à mostra foi que avistou Beatriz chegando toda feliz. 

A que ponto chegará! Que inveja do “alemão”! Ele é um amigo que circula pela rua onde Valente mora. Sempre de bem com a vida. Todos o conhecem e ele a todos cumprimenta, balançando o rabo: mais faceiro que pinto em quirela. Dão-lhe, todos os dias, o que comer. É freguês do boteco da esquina. Vive solto a vadiar. Não tem obrigações. Pode fazer cocô e xixi em qualquer lugar. Encontra-se, sempre que dá no jeito, com as gurias da zona, isto é, da zona onde mora. É bonito, aloirado, garboso. Vive, por assim dizer, sem frescuras. Isto é que é vida! 

Agora, essa sua vidinha está se tornando um saco! Na verdade, o que mais o preocupa é a questão dos cheiros, dos odores misturados com os perfumes. Está perdendo até o apurado faro, seu ponto forte. E o pior... Acredita que terá dificuldades, daqui pra frente, em distinguir aquele cheiro tão bem-vindo, que há tempo não mais encontra, por absoluta clausura. Já anda até destreinado! E se facilitar, poderá enganar-se feio. Já pensou? Que vexame! 

Talvez o melhor seja mesmo acomodar-se em sua nova caminha e sonhar com a chapinha, a escova de morango ou chocolate e com a vinhoterapia pra pets. Disseram, lá na petshop, que vai revitalizar seu pelo através do poder antioxidante dos polifenóis contidos na uva, além de serem ricos em vitaminas A, C, e E. 

A única dúvida é se isso vai torná-lo mais feliz. A clausura já se instalou mesmo. Parece não haver saída, senão deitar e gozar. Gozar? Isso é coisa pra geração passada. Essa nova espécie canina anda mais frustrada que os seus próprios donos. Aliás, já incorporaram todos os tiques e manias dos seus senhores. Sabe de uma coisa? 

Se ficar muito difícil aguentar esta barra, Valente acha que vai exigir um apoio psicológico, ingressando nesses grupos de terapia para cães. Afinal, já é praticamente um ser humano! Escovam-lhe diariamente os dentes, faz xixi e cocô numa espécie de vaso sanitário, come salgadinhos, waffle com chocolate, tem à sua disposição toda a sorte de petiscos. O que mais querem? Que fale? Pô, aí seria demais... Mas, se fosse possível, diria a Beatriz que o trate com mais carinho, que o afague, que seja menos rude. Pois é isso que todo ser vivo mais quer. Não interessa essa formosura toda, que é só aparência, se não nos relacionamos com amor. E, se não for pedir muito, que lhe dê um pouquinho mais de liberdade. Afinal, a espécie precisa perpetuar-se. E disso os humanos entendem muito bem.