domingo, 9 de novembro de 2008


 

GESTO REVELADOR


A exteriorização de certos comportamentos sociais pode revestir-se de um racismo exacerbado, sem aparentemente sê-lo.

Aqui, reporto-me a uma cena, contada por minha tia Carolina, ocorrida lá pelos idos de 1950.

Na época do chamado “footing” na Rua da Praia, sua irmã mais nova passeava com amigas em uma tarde outonal. Pela rua, circulavam inúmeras pessoas.

De repente, numa virada de esquina, um homem, de cor preta, esbarrou na dita senhorita, encostando, de leve, seu braço contra o ombro dela. A cena que se seguiu, a mim contada, jamais desapareceu do meu olhar de adolescente, ouvinte atenta das histórias de família. Pois, não é que aquela moça, rapidamente, levara sua mão ao ombro, fazendo um gesto, como a retirar de si uma sujeira que caíra sobre ela. Esclareça-se que esta cena foi contada à tia Carolina pela própria autora do gesto, que revelou raiva e nojo pelo inusitado “encontro”.

Esse episódio relatado, já àquela época, indignara-me profundamente. E assim manteve-se tal cena, como que congelada ao longo dos anos, servindo de mote, hoje, para esta exposição sobre tão delicado tema: o do racismo.

Sabe-se que o racismo é uma das formas de violência mais sub-reptícia, por vezes de difícil percepção, mas nem por isso menos violenta.
Entre 1798 e 1872, conforme apontamentos históricos, os afro-brasileiros, escravos e livres, eram duas vezes mais numerosos do que a população branca. É claro que a elite se preocupava, pois em menor número temia insurreições, que já se instalavam em alguns redutos. Sendo os negros, na sua maioria, de temperamento dócil, seria muito mais proveitoso economicamente libertá-los, mantendo-os sob um tacão tão cruel quanto antes, porém politicamente mais ao gosto de nações ditas desenvolvidas, com as quais o Brasil já começava a se tornar parceiro.

Portanto, libertar os escravos, “abrandar” a visão sobre o negro, mantendo-o na condição de negro, pobre e trabalhando nos campos dos brancos, é o que pareceu mais conveniente à época. Somadas essas circunstâncias ao caráter dócil do homem africano, foi fácil libertá-los apenas “pro forma”.

Sabe-se, por outro lado, que um racismo “inconsciente” perpassa, inclusive, por textos escolares, onde, muitas vezes, a composição étnica de um determinado povo é apresentada com laivos de inferioridade. Isso está presente em excertos, que podem ser lidos e bem apreciados no capítulo Raças e Povos da Terra, do livro Mentiras que Parecem Verdades, escrito por Marisa Bonazzi e Umberto Eco (edição de 1972).

Particularmente, no referido capítulo, os exemplos fornecidos por esses pequenos textos apontam o caráter sutil da discriminação racial, presente em todas as raças e povos (páginas 55 e 56).

Esse livro, escrito a partir da análise de textos escolares italianos, traz, em seu bojo, críticas severas a vários tipos e formas de discriminação e, principalmente, à forma como é imposta uma espécie de submissão ideológico-curricular, onde determinadas“imbecilidades solenes”, como diz o apresentador da obra, Samir Curi Messerani, “nos inculcaram nas escolas, abusando da ingenuidade do leitor infantil”.

Os textos Páginas Belas, O Negro é Estúpido e o Destino da África tratam do racismo contra o negro.
Esclarece-se que, na mesma abordagem, outros tantos textos referem-se a outras etnias como os chineses, os alemães, os árabes e os próprios italianos miseráveis.

O racismo é como um cancro que corrói tudo em volta, acabando por exterminar seus gestadores em finais de vida violentos, encerrando períodos históricos de forma sangrenta.

Quando os níveis de tensão chegam ao ápice, ele explode de forma violenta. O que, até certo ponto, é preferível, pois possibilita, como na sociedade americana, a reconstrução do indivíduo e sua consequente inclusão no cenário mundial (por ex. políticos americanos, Secretários de Estado, etc).

No caso brasileiro, a situação é muito mais delicada, porque mais sutil. Aqui também existe racismo não apenas contra negros, e sempre de forma velada, escamoteada. A diferença é que com os negros é mais explícita por razões históricas. Hoje, essa prática já sofre sanções. É o que dispõe a Constituição Federal de 1988, através de seus incisos XLI e XLII, bem como leis e decretos posteriores relativos ao tema.

Assim, racismo é um sentimento existente desde há muito. Dir-se-ia desde sempre. Talvez, tê-lo seja próprio de alguns seres humanos.
É a pequenez da alma, a soberba da intolerância, o pisotear sobre o seu semelhante. É a incapacidade de ver-se no outro.
É, por exemplo, não convidar um colega negro para a festinha de aniversário, pois, talvez, ele não seja bem recebido pelos parentes mais velhos, ranço de um passado não tão distante, mas deveras vergonhoso.

Logo, a discriminação disfarçada, dissimulada, que se exterioriza sutilmente, é a pior de todas. É aquela que se revela num gesto despercebido, banal, corriqueiro. Às vezes, até numa palavra aparentemente jocosa, mas não menos ofensiva.

E, quando essa discriminação se instala, é de difícil extração.
São pequenos gestos reveladores, que não mais chamam a atenção.
Por isso, parafraseando Martin Luther King:
- É melhor surpreender-se, defrontar-se com o grito dos maus, do que com o silêncio dos “ditos bons”. Silêncio eivado de latente desprezo pelo outro, acrescente-se.


OBS: Este artigo foi escrito no ano de 2007, a partir de temas abordados em encontros de Produção Textual, realizados na Faculdade de Educação da PUC/RS.


Hoje, retomando o assunto, penso que a sociedade americana superou-se. Elegeu para seu Presidente um negro.
Foi um gesto que revela uma efetiva mudança e atesta a grandeza do país.
Tomara que, como disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em entrevista publicada por Zero Hora na data de ontem, o presidente recém-eleito “não esqueça que a Casa Branca foi construída por escravos negros. Chegou a hora de os Estados Unidos se libertarem da sua pesada herança racista”.
Por aqui, um dia, ainda chegaremos lá.
Mas as dificuldades de ascensão do negro, na escala social, continuam enormes.

Urge que uma educação pública de qualidade se instale, cumprindo papel relevante para o desenvolvimento pleno de todos os cidadãos, indistintamente. É o que se almeja.

E o exemplo do novo presidente, com uma sólida educação formal, atesta a importância do saber na ascensão do indivíduo em sociedade. Mas só isso também não basta. É necessário que um novo olhar se detenha nas diferenças culturais em que estamos todos inseridos. É algo bem mais profundo. Exige de nós a capacidade de ver-se no outro, apesar dessas diferenças: de sentir-se humano. E, como tal, único ser vivo capaz de promover mudanças, pois detentor de livre-arbítrio.

Talvez, Barack consiga unir o que há de melhor na cultura africana com a filosofia dos povos nativos americanos. Desse caldo, que diz não existir “dualismo”, e de que a vida é um ciclo contínuo e somos um todo com a natureza, talvez consiga ele romper com a tendência ocidental de estabelecer, sempre, um conflito de opostos. Pois isso, na essência, não existe.

Lembremo-nos de Rubem Alves, educador emérito, que disse:
“Sem a educação das sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentido”.
Utopia?
Mas é bom sonhar...

Leia a notícia.

sábado, 1 de novembro de 2008




 

ENFIM, NIVELADOS...


“Me dá uma moeda pro pão?”

Que cena mais comovente! Os olhos mortiços do guri, ainda pequeno, espelham a cara da fome. Encolhido junto a uma parede, próximo à confeitaria, seu pedido repete à exaustão. A maioria não se detém.

Parece que ninguém mais ouve, enxerga ou se incomoda com essas cenas. Ficou combinado que isso é assim mesmo. Uns têm, outros não têm. Uns vivem, outros vegetam. Uns exploram, outros são explorados.
E os dias arrastam-se para uns, à semelhança de seus fétidos corpos arrastando-se pelas calçadas.

E os dias voam para outros, à semelhança de seus velozes carros, de seus aparatos tecnológicos que consigo carregam. Correm porque o feriado se aproxima. Terão tempo para uma escapada, que pode ser logo ali, há alguns bons quilômetros ou até há alguns milhares de quilômetros. Pra que existe avião?

Que coisa mais chata essa gente esparramada sobre calçadas de avenidas tão nobres. É uma verdadeira poluição visual.

Vamos buscar outros ares. Pelo menos, vamos mudar os cenários e ver essa mesma gente espalhada sobre calçadas de outros lugares. Oh, pobres coitados! Vamos nos engajar em campanhas mundiais. Ao menos estão eles bem longe de nossos olhos. A gente contribui e acalma a consciência. E já está de bom tamanho a nossa preocupação com o social. Os esfarrapados daqui, afinal, vivem num país tropical. Não devem sofrer tanto com o frio.

Pois, a moça parou. Quis dar a ele uma moeda de um real pra comprar pão, mas o guri pediu:

“A senhora compra, tia, e me dá”.
Ficou sentado, encolhidinho, esperando. Será que ele sabe qual é o “seu lugar”? Não quis entrar, nem junto com a moça. O seu lugar é ali fora. É, mais ou menos, como o cachorrinho que deve ficar fora do estabelecimento. É pior. É muito pior.

Nessas alturas, a moça lembrou-se da cena fotografada, onde caixões e caixas abertas e amontoadas, fétidas, com restos mortais, esperam destino para possível incineração, por falta de pagamento na manutenção dos túmulos.

Tem diferença entre pagar e não pagar? Parece que sim. Será mesmo?
Se pagar, fica fechadinho, guardadinho. Se não pagar, vai pro forno. Tem diferença?

E essa gente esparramada pelas calçadas? Vai pra onde? Pra vala comum, que está de bom tamanho.

“Pois à terra dada não se abre a boca”- trecho do poema dramático Morte e Vida Severina do poeta maior João Cabral de Melo Neto – mostra-nos que esta vida pode ser mais Severina, ou menos.




    
     trecho de Morte e Vida Severina



Mas ao fim, todos, com certeza, estaremos nivelados.
Pois o sopro divino não faz distinções. E, como sabemos, estamos todos de passagem.

Reflitamos sobre isso nesse Dia de Finados.



sexta-feira, 31 de outubro de 2008


 

DAS ÁGUAS...


Estela vai desviando das poças d’água. Busca com os olhos o lugar melhor, na calçada, para pisar. Chove muito. Como tem chovido!

Uma imagem assalta seu pensamento. Aquela da crônica que, há tempos, escrevera.

A cena do redemoinho, da avalanche que se avizinha, de um movimento que começa lento e vai-se acelerando: até o irromper, por estreita passagem, de um novo ser. Lá esteve, por bom tempo, imerso em meio líquido. Seu corpo é mais de 70% composto de água. Aliás, o que une toda a humanidade, bem como toda forma de vida, é a água. A própria superfície do nosso planeta, em sua maior parte, é água.

A água é sempre benfazeja. Ela alimenta, cura, purifica, limpa. Ela faz parte de nós. Estela vai assim divagando. Seu pensamento borboleteia, buscando ideias. Esbarra em conceitos, se embaraça em teorias.

De algum lugar, um pássaro cantor interrompe seu pensar. Mas pensar ainda é próprio de sua espécie. Assim, persevera e continua estabelecendo comparações, analogias. Busca, por assim dizer, a convicção da melhor opção. Para si, para o outro ou para ambos?

Puxa, é difícil! Melhor seria ter permanecido deitada em ventre esplêndido, ao som de um mar profundo e à luz dos olhos da mamãe, que cuidava dela o tempo inteiro.

Mas, que nada! Hoje, Estela está aqui: pronta para decidir. Ela que é quase só água, não pode colaborar para o barco fazer água. Que responsabilidade! E disseram a ela que isso é ter espírito cívico. Será?

Será que ela deve depositar sempre em outras mãos a solução de problemas em que se sente tão omissa? Será que os vizinhos da sua rua não poderiam, quem sabe, resolver aqueles problemas tão próximos a si próprios? E os da rua seguinte, outros problemas próximos a eles?

Oh, quantas questões! Pensar é preciso. Temos o maior poder à nossa disposição que é o pensamento. O problema é aprendermos a usá-lo, guiando-o pelas veredas do bem comum. Há que se ter um olhar estendido ao coletivo e que ações concretas sejam implementadas. Que discurso mais bonito, Estela!

Deixa os discursos pra eles! Trata de ti, dos teus e, se fores mesmo uma cidadã consciente, cuida, dentro do possível, daqueles a tua volta. Que já fazes muito!

Quanto à chuva, tenho certeza de que esperas com ansiedade que ela lave por completo a sujeira que, porventura, tenha ficado por debaixo dos discursos. Que ela cure as ofensas ditas e as injustiças cometidas: tudo assistido por todos nós. Que ela alimente novos projetos e aqueles outros tantos em andamento.

E, principalmente, que nessa hora derradeira, irrompa, desse caldo de águas um tanto quanto turvas, um condutor à altura de Estela e de seus concidadãos.

E que se CONFIRME o acerto na escolha com a tecla CONFIRMA.