quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ESTÁ MAIS DO QUE NA HORA


Para quem elegeu Deus como sendo gaúcho, maragato ou chimango, conforme diz a letra, a questão que rola por estes últimos dias não tem grande importância. A todos ELE abraça. 

E quem são os abraçados? 

Todos nós que ajudamos a construir este Estado. Independentemente de cores, raças, etnias, credos religiosos, tendências de quaisquer ideologias, todos portamos o mesmo código genético: o dos humanos. Daí nossa complexidade. 

As combinações genéticas perdem-se na poeira dos tempos. Fomos, com o passar dos séculos, nos aprimorando. Aprimorando? Ou será que somos ainda os mesmos homens primitivos que corriam pelas savanas? 

O fato é que quando estamos em manadas, tal como em antigas eras, adotamos um comportamento bem típico: aquele em que o transgressor, sentindo-se protegido pela multidão, dá vazão àquilo que os demais também estão a praticar. 

Gritar, em uníssono, palavrões para uma autoridade politicamente constituída, ou para um árbitro de futebol a todo o instante; fazer gestos obscenos quando se vê ultrapassado por um carro, ou, ainda, em plena rede social, para dar uma de “modinha”, convenhamos, é retroceder. Agindo assim, promovemos uma involução no movimento civilizatório que acompanha o ser humano há milênios. 

O refrão entoado a plenos pulmões não desperta sentimentos, mas sensações primitivas. E, na maioria das vezes, os indivíduos que habitam o planeta, principalmente em grandes aglomerações, são buscadores insaciáveis de sensações, destituídas de contemplação, mas predatórias e devoradoras. Veem no outro, principalmente quando em campos opostos, um constante opositor a quem fustigam para eliminá-lo, de qualquer forma. 

Michel Lacroix, filósofo francês, afirma que passamos por uma época de bulimia das sensações fortes. 

Refere, com propriedade, a diferença entre o grito e o suspiro. O primeiro, fruto de uma descarga brusca da emoção, uma verdadeira explosão. O segundo, resultado de uma emoção lírica, produto de uma interioridade tranquila, quase um recolhimento. A primeira manifestação dá-se num instante e sua duração esbarra numa sucessão rápida de outros tantos momentos. A segunda, perdura até que se transforme de emoção para sentimento. Esta última expressão, com certeza, não acontece num campo de futebol. Como num campo de batalha, em que a preocupação é a sobrevivência com a consequente eliminação do opositor, as arenas atuais têm-se tornado palco de demonstrações incontroláveis da chamada emoção-choque, aquela que coloca o corpo em ação em detrimento da emoção-contemplação que busca usufruir, conforme Lacroix, o sabor do mundo, aquele que se liga a um coração receptivo. 

Íamos a campos de futebol, tempos atrás, para ver o “time do coração” jogar. Uma coisa é assistir a um jogo e torcer. Manifestar-se de forma ofensiva, depredando, incendiando, ofendendo, aos berros, é outra coisa! 

A situação chegou a tal nível que surgiram as câmeras (coisas da modernidade), para que se registrassem e se adotassem medidas visando a coibir tais atos. 

Com certeza, no episódio tão momentoso quanto este do xingamento ao goleiro do Santos Futebol Clube, outras tantas ofensas, iguais àquela objeto da denúncia, devem ter ocorrido na mesma partida, por outros indivíduos que também lá se encontravam. Com relação a estes, as câmeras, ou não existiam nas proximidades, ou não registraram de forma cabal tais manifestações. 

Colocar mais câmeras seria a solução? 

Teríamos, dessa forma, mais denunciados? 

E quando a multidão ofende com palavras de baixo calão uma autoridade? 

E nos demais campos de futebol deste Estado e de outros não ocorrerão episódios idênticos? 

Medidas corretivas devem ser tomadas, com certeza. Não serão, porém, suficientes. A legislação já existe. Já há leis demais, para todos os gostos. 

Acredito que a Educação, num sentido amplo, nos forneça o caminho para a grande transformação que estamos todos a necessitar. Somente ela poderá promover a reinserção de tantos milhões de indivíduos num mundo mais aperfeiçoado, composto por elementos conscientes de sua importância na construção de uma nova civilização planetária: mais justa e fraterna. 

Segundo Luc Ferry, outro filósofo francês, em oposição ao chamado espírito limitado, o chamado pensamento alargado, que defende, é “aquele que consegue arrancar-se de si para se colocar no lugar de outrem, não somente para compreendê-lo, mas também para tentar, num momento em que se volta para si, olhar seus próprios juízos do ponto de vista que poderia ser o dos outros”. 

E continua: 

É o que exige a autorreflexão de que falávamos há pouco: para que se tome consciência de si, é preciso situar-se à distância de si mesmo. Onde o espírito limitado permanece envisgado em sua comunidade de origem a ponto de julgar que ela é a única possível ou, pelo menos, a única boa e legítima, o espírito alargado consegue, assumindo tanto quanto possível o ponto de vista de outrem, contemplar o mundo como espectador interessado e benevolente. Aceitando descentrar sua perspectiva inicial e arrancar-se ao círculo do egocentrismo, ele pode penetrar nos costumes e nos valores diferentes dos seus; em seguida, ao se voltar para si mesmo, tomar consciência de si de modo distanciado, menos dogmático, e com isso enriquecer suas próprias ideias. (livro APRENDER A VIVER – Filosofia para os Novos Tempos – p. 281/282) 



E uma Educação Humanista, fornecida desde os primeiros anos de escola, com ênfase nas diferenças existentes entre os seres humanos, dada a sua natural complexidade, deverá ser o caminho a seguir. 

Todos iguais, todos humanos, porém complexos. A tarefa é entendermos essa complexidade, respeitarmos as diferenças, acaso existentes, para atingirmos a sabedoria de que somos produto de uma origem comum e que, TODOS, por ELE somos abraçados, indistintamente. 



Pois é! O primeiro parágrafo, que iniciou esta reflexão, parece que não foi muito além da união, pela unção divina, entre Maragatos e Chimangos. Mas já é um começo! 

Quanto à moça e a expressão ofensiva, registrada pela câmera, servirão, ambas, para que se reflita sobre o que representa o outro, que nos parece tão diferente de nós, diante de nós mesmos. 

Somos iguais na complexidade. E estamos todos, sob o abrigo DELE, conforme já registrado. 

Temos que aprender esta lição. Está mais do que na hora. 




Fiquem, agora, com um vídeo que ilustra a negritude de que é composto o Brasil. Após, algumas curiosidades acerca do compositor de tantas melodias de sucesso no cancioneiro nacional, bem como do Hino do Grêmio Futebol Porto-Alegrense: Lupicínio Rodrigues. 

Aliás, a palavra grêmio vem do latim gremium que significa regaço, seio, colo. Nele, devem todos caber, como sempre couberam, a começar pelo negro, autor do seu hino, e de tantos outros atletas negros de reconhecidas qualidades.




Grandes personagens da história gremista (da esquerda para direita e de cima para baixo):
Lupicínio Rodrigues, Antunes, Paulo César Magalhães, Tarcísio, Dener, Émerson, Róger, Fernando, Tesourinha, Paulo Cézar Caju, Paulo Isidoro, Everaldo, Ronaldinho Gaúcho, Anderson, Zé Roberto.




Preto, Cor Preta - Jorge Aragão





Os Fagundes – Querência Amada






quarta-feira, 27 de agosto de 2014

À BEIRA DE UM RIO



Não temos a estátua do Cristo. Não temos o mar.

Temos, porém, o nosso Guaíba. 

E o vemos do alto do Morro Santa Tereza. Através das precisas aberturas, que enquadram a paisagem no Museu Iberê Camargo, obra do premiadíssimo arquiteto Álvaro Siza Vieira, também podemos vê-lo. Acompanhá-lo também é possível ao longo da Avenida Edvaldo Pereira Paiva. No Gasômetro e no Cais do Porto nossos olhos esbarram com ele o tempo inteiro. 

Atravessá-lo com as antigas barcas, num caminho de ida e volta até a cidade de Guaíba, era um divertimento. Barcas enormes onde cabiam vários automóveis. Claro, não havia o conforto dos catamarãs de hoje. O visual, porém, era o mesmo. Um rio que desliza suave, que não amedronta. Um rio que é o cartão postal desta cidade. Que mais lindo ainda se torna quando o sol se deita para iniciar o seu sono profundo.

As imagens diárias das inúmeras guerras que se sucedem deixam nossos olhos por demais fustigados. São escombros, uma mortandade generalizada, semblantes retorcidos pela dor, pela fome e pela perda de familiares e de seus bens. E a beleza natural dessas terras, referenciais para esses povos, também estão destruídos. Rios que serviram de cartão postal para suas comunidades e que hoje estão deteriorados pelos artefatos de guerra, ali, constantemente, despejados.

Longe da devastação, produto de guerras fratricidas, por aqui se propaga outra devastação. Esta, com certeza, deveria ser bem mais fácil de ser estancada. Infelizmente, porém, não o é. 
A recente reportagem de ZH, de 26 de julho, confirma esta assertiva.

E pensar que eu me banhei nas águas da Praia de Ipanema, zona sul de Porto Alegre.

A perda para os negócios turísticos é incalculável. Uma orla extensa sem qualquer aproveitamento para o turismo, tal a sujeira e poluição que grassam por todo o rio.

Lixo, lixo e mais lixo.

O Museu Iberê Camargo, o Parque Marinha do Brasil, o Anfiteatro Pôr do Sol, as margens da Usina do Gasômetro, o Cais do Porto, todas estas belezas aos pés da imundície, da podridão, do descaso, do descompromisso com o meio ambiente, com a sua cidade.

Como é possível um rio sobreviver diante de tal devastação! Afinal, bebemos deste rio. Até quando será possível consumi-lo sem que nos prejudiquemos, tal a quantia de produtos químicos necessários para que se consiga sua potabilidade?

Este é um assunto de extrema gravidade e que deve envolver a todos: comunidades, indústrias da região metropolitana, Governos do Estado e dos Municípios.

A Lei nº 12.305, de dois de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, estipulou o prazo de quatro anos para a total implantação dos chamados aterros sanitários em substituição aos lixões. Os rios Jacuí, Gravataí, Sinos e Caí, todos eles formam o nosso Guaíba, que desemboca na Lagoa dos Patos. Mas quantos arroios desembocam nestes rios? Quantos deles também já se encontram poluídos? 


Belas imagens dos arroios de outrora foi o que nos legou Mário Quintana, através dos versos que seguem:





Infelizmente, nem estes se salvaram da poluição. Às vezes, é por eles que começa ela a espalhar-se.

Luiz Coronel, em NOTURNO DE PORTO ALEGRE, do livro Um Querubim de Pantufas, nos versos nºs 17 a 24, exalta o Guaíba, despejando perfume em suas margens e vendo em seu pôr do sol, quase uma miragem.


- Ó cidade, bem não te conhece quem um dia não tenha
se entregue aos teus braços de rio de margens perfumadas.
Breve, eu sei, tenho certeza, muros e anteparos tombarão
e o “Porto dos Casais” e o rio serão uma verdade única e entrelaçada.

Mas quais virtudes, além de tua beleza, te fazem assim
amada e envolvente? Teu pôr do sol, quase miragem?



Como seria belo vê-lo assim. Belo para os olhos de quem não cansa de apreciá-lo, e fornecendo água limpa, própria para um mergulho nas águas de Ipanema. Uma Ipanema que se juntava as outras praias da região: a do Lami, a do Espírito Santo, a do Veludo e por aí...

Um rio abandonado a sua própria sorte, com lixo depositado às suas margen, é o que a cidade observa.

Porém, acreditem, suas águas ainda encontram-se, quase que diariamente, com ele, o Sol, oferecendo-se para o encontro amoroso.

E ele, acariciado pelas suas mãos de seda, deita-se no leito, conforme RELATO DAS RELAÇÕES DO SOL COM AS ÁGUAS DO GUAÍBA, poema de Luiz Coronel, do livro Um Girassol na Neblina, espargindo luz até o final do encontro.




E a cidade, à beira deste rio, agradece o espetáculo que se renova sempre que propício o tempo. 

Na verdade, os cidadãos querem bem mais do que assistir ao espetáculo do pôr do sol às suas margens. Querem, novamente, desfrutar de suas mansas águas.

E a cidade aguarda que o Estado tome as medidas necessárias para a implantação efetiva desta importante política ambiental, acompanhada de uma fiscalização rigorosa pelo seu não cumprimento.

E o cidadão aguarda...

Nós, porto-alegrenses, aguardamos...

Até quando?









Entre o Guaíba e o Uruguai – Noel Guarany





quarta-feira, 20 de agosto de 2014

UMA MANHÃ PARA ESQUECER!


Para quem se dizia “o rei do pedaço”, foi muita humilhação amanhecer daquele jeito. Uma situação totalmente imprevisível acontecera.

A coisa toda fora mais rápida que bote de cobra. 

Lembrava que, naquela noite, tudo se acalmara bem cedo. Os viventes e também os animais acolherados junto aos galpões, no meio do feno, descansavam. Quando Epaminondas, o Epa, fazia um último reconhecimento pelo cercado, já tardiamente, para ver se nenhuma de suas preferidas por lá andava ainda a ciscar, aconteceu o inusitado. 

Quem poderia prever algo tão insólito! Não houve tempo para reação.

Parece que já o esperavam para fazer tal judiação. Logo ele, que morria de pena do Gonçalo, o Gonça, sempre às voltas com aquele incômodo a que o submetiam quando chegava qualquer visitante. O patrão Humberto até tinha razão para tal procedimento. O bicho ficava uma fera quando aparecia qualquer cara nova pela redondeza. Então, a solução era uma coleira que lhe colocavam, mantendo-o preso junto ao potreiro.

Latir raivosamente é uma coisa. Dá medo e precisa de contenção.

Agora, cantar é outra coisa. No seu caso, era a confirmação diária de seu charme e elegância quando se aproximava delas. Elas todas gostavam. E como gostavam!

Ele conhecia, melhor do que ninguém, os hábitos daquele rincão. Madrugador, que nem os pássaros da região, soltava o seu reconhecido canto, numa total demonstração de que continuava vivo e no comando.

Naquela manhã, porém, a bruxa estivera solta por lá. O interessante é que sua preocupação passava longe daquilo que aconteceu.

Andara sabendo que, há algum tempo atrás, lá pras bandas da Cidade Maravilhosa, um companheiro já tinha sido preso por ordem judicial. Tudo porque cantava a plenos pulmões durante a madrugada. A notícia não descartava a hipótese de ser o pobre despejado. Coitado do Natal! Este era o seu nome. Não sei como andará ele hoje. À época, ele cantava de oito em oito segundos, durante a madrugada, segundo depoimento do seu algoz.

Agora, Epa respeitava horários.

E, claro, não vivia em plena Copacabana, conforme seu patrão lhe segredou, depois de ler a notícia que, aliás, encontra-se registrada logo abaixo.



Mas voltando à manhã fatídica, nunca imaginou que passaria por tal situação. Ao contrário do amigo Natal, o Epa não foi preso. Pôde andar toda a manhã, desfilando a sua impotência diante de todas aquelas beldades, suas conhecidas há tanto tempo.

Uma verdadeira humilhação. Estava livre do pescoço para baixo. 

Imaginem a cena! Como cantar com a goela presa! 

Daquela manhã jamais esquecerá!

Após um tempo interminável, apareceu um cidadão todo uniformizado que o tirou, finalmente, daquele constrangimento.

Soube, dias depois, que o tal artefato tinha como lugar de uso o tornozelo. Claro, com os gambitos que tem, foi mais fácil o meliante desfazer-se da engenhoca prendendo-a ao pescoço do Epa. Um colar de fazer inveja às belezocas do quintal!

Agora, o Epaminondas acredita, firmemente, que o meliante não quis debochar de ninguém. Quis livrar-se da engenhoca e foi criativo.

O Epa, que se recupera do vexame diante das suas fãs, anda a cantar mais alto do que o de costume. Só para reforçar seu importante papel no galinheiro do seu Humberto.

Ouviu, dias atrás, seu patrão a matraquear pelo galpão umas ideias com as quais concorda.

Se a coisa está tão fácil assim, melhor é dispensar as tais tornozeleiras. Afinal, se assim fosse, ele, o galo Epaminondas, não teria sofrido todo esse vexame.

Quanto ao seu patrão? 

Bem, o Epa não tem uma resposta de pronto.

Acredita, porém, que ele e os demais estancieiros farão a diferença quando exigirem do Estado soluções eficazes e duradouras, para que o deboche não se estabeleça como prática cotidiana.



Aliás, a criadora do Epaminondas lembra o poema TECENDO A MANHÃ, de João Cabral de Melo Neto, que reforça a necessidade de união de todos, representados ali, ao invés do canto, pelos gritos dos galos, que se agrupam em torno da construção de um tecido social tão forte que ascende, por si só, em busca de soluções para o coletivo.


Pois é! Epaminondas e seus pares não sabem que serviram de mote para tão denso poema. Poema que, tornando-se concreto, poderia resolver o caso “das tornozeleiras”. Quem sabe, com o decreto de sua inutilidade e com o avanço e efetiva solução do problema carcerário no Brasil.

Quem sabe!





TECENDO A MANHÃ – poema de João Cabral de Melo Neto