quarta-feira, 10 de setembro de 2014

DIFÍCIL ACESSO... ao caminho das formiguinhas... ou a uma quinta lua...

Um dia, os olhos abriram-se. Quantas sensações foram-se somando! O tempo, figura despercebida, foi-se instalando a trotezito leve pelos dias e noites que se iam seguindo.

Os referenciais próximos eram todos seres iguais a si ou, pelo menos, tão vivos que mexiam o rabo, que balançavam ao vento, que cantavam ao longe, batendo as asas.

De vez em quando, uma chuva fina presenteava os olhos com aqueles pingos que escorriam pela vidraça. Por vezes, uma ventania derrubava alguns vasos mal colocados sobre a beirada de uma cerca. Também, às vezes, o frio mostrava a cara pela manhã, deixando suas marcas sobre o pátio em que havia uma pequena horta de verduras. 

À noite, tudo serenado, a lua surgia imponente, glamorosa, servindo, naquela época da infância, apenas como depositária de sonhos e perguntas ainda sem respostas.

Tudo se resumia a um pátio, a uma casa, bichos, pessoas e a mão caprichosa da Natureza: com suas alternâncias de luz e escuridão, de frio e calor, de secura e aguaceiro. Nada mais tranquilo do que o barulho da chuva fina sobre o telhado. 

Todos os ingredientes estavam ali presentes para as histórias que iam acontecendo ao natural.

Isso possibilitou que memórias fossem sendo armazenadas, sedimentando o chão de minha alma, palavras do escritor moçambicano Mia Couto, por mim tomadas de empréstimo.

Como relata o festejado escritor na Aula Magna, que abriu o 2º semestre do ano letivo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi de grande importância a casa em que viveu e, em especial, o chão de pedra da cozinha. Local por onde desfilavam as falas das mulheres, da família ou não, e onde fazia ele seus temas escolares. Também o convívio com o pai, durante as caminhadas pelos trilhos de uma via férrea, ensinou-lhe a relação com as coisas de menos valia material, mas de importantíssimo valor sentimental. Algo que dá uma dimensão da necessidade de se absorver um jeito vagaroso de existir, pois este enriquece a capacidade de observação. Momentos de extrema intimidade com as pessoas, as coisas e consigo próprio. Tudo de grande importância para quem viria a se tornar escritor por vocação, acredito eu. Mia Couto, de profissão biólogo, é, como tal, alguém dedicado a decifrar aspectos da natureza humana. 

Da rica palestra, que se encontra registrada abaixo, há inúmeras situações relatadas que nos dão uma visão mais detalhada das falas, das crenças, dos deuses e dos tempos da sociedade moçambicana.

A nós interessa, por ora, apenas os aspectos que se referem à importância das lembranças infantis ali descritas. Mais especificamente ao tempo e à intimidade, ambos desfrutados ao longo da infância, ao lado de referenciais humanos e da natureza.

A presença física, as vielas, as ruas, as praças, os lugares por onde se anda não podem desaparecer do contexto infantil. O registro de uma imagem, apenas, não é o bastante. O que importa é o registro mental daquela vivência. Esta é que perdurará. Temos que permanecer sendo autores de histórias vivenciadas e registradas em nossa memória. Elas, sim, dar-nos-ão suporte para o nosso equilíbrio psicossocial.

Mia Couto compara, a certa altura, o tempo atual como se fosse uma cobra em que lhe comeram a cabeça e lhe arrancaram a cauda. Ocorrendo tal amputação, resta-lhe o pescoço apenas. Portanto, sem cérebro e sem capacidade de movimento, pouco sobra para que haja opção de escolha ou de direção a seguir (interpretação minha). Muitos seres humanos, moldados nesta metáfora, se subordinam ao transitório que, por sua vez, já nasce morrendo. Temos, então, neste caso, o tempo do consumo que empobrece aquele que não cultiva o tempo necessário ao encantamento, à intimidade, ao prolongamento do sentir, do observar, do usufruir. Tempo, esse sim, rico de memórias e histórias para contar.

Voltando ao tempo das sensações infantis, como armazená-las se não temos tempo para tal, nem ambiente ou pessoas capazes de nos levar pela mão a nos mostrar tais maravilhas? 

Seguem, abaixo, pensamentos de Mário Quintana, extraídos do livro CADERNO H, que nos fazem atentar para a importância do sentir e do observar:




As cenas descritas pelo nosso poeta Quintana são fruto de momentos vividos e, posteriormente, revividos pela memória e lançados ao tempo que os imortalizou. É o que se pretende para cada um de nós: que nos imortalizemos pelas ações e criações que deixaremos como herança. Para isso precisamos do convívio com os nossos iguais e com os demais seres que habitam a natureza. Tudo dentro de um tempo pessoal e intransferível. Um tempo para observar aquela carreira de formiguinhas, levando cada uma a sua folhinha para um mesmo lugar que só a imaginação infantil poderá descrever. Um tempo para sentir, relacionar, criar e amar. Um tempo que sedimente nossas lembranças e nos faça autores de nossa trajetória. E não meros consumidores do agora que, logo ali, não mais existirá.

É! Está difícil o acesso da sensibilidade para o registro do perene. Apenas o transitório parece ter vez.

Tomara que tenhamos outros tantos escritores que busquem, como Mia Couto, nas histórias criadas, o desejo de manutenção de valores que perpassam pelo encantamento da infância e seu recriar: elementos imprescindíveis para uma evolução sadia desse antigo homem das cavernas.

Pois é! Pra quem, um dia, soube apreciar a Lua, tempos depois, saberá saudá-la. Verá uma lua que acende o céu com meia argola quebrada ou até descobrirá outra fase da lua, a quinta, que inspirou a música POEMA DA QUINTA LUA, letra de Sérgio Carvalho Pereira. Nela, o versejador ata a rédea na mirada da amada e neste olhar se acende a quinta lua, uma lua de amor.






Aula Magna ministrada por Mia Couto, escritor moçambicano, que  abriu o 2º semestre do ano letivo da UFRGS


Poema da Quinta Lua





quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ESTÁ MAIS DO QUE NA HORA


Para quem elegeu Deus como sendo gaúcho, maragato ou chimango, conforme diz a letra, a questão que rola por estes últimos dias não tem grande importância. A todos ELE abraça. 

E quem são os abraçados? 

Todos nós que ajudamos a construir este Estado. Independentemente de cores, raças, etnias, credos religiosos, tendências de quaisquer ideologias, todos portamos o mesmo código genético: o dos humanos. Daí nossa complexidade. 

As combinações genéticas perdem-se na poeira dos tempos. Fomos, com o passar dos séculos, nos aprimorando. Aprimorando? Ou será que somos ainda os mesmos homens primitivos que corriam pelas savanas? 

O fato é que quando estamos em manadas, tal como em antigas eras, adotamos um comportamento bem típico: aquele em que o transgressor, sentindo-se protegido pela multidão, dá vazão àquilo que os demais também estão a praticar. 

Gritar, em uníssono, palavrões para uma autoridade politicamente constituída, ou para um árbitro de futebol a todo o instante; fazer gestos obscenos quando se vê ultrapassado por um carro, ou, ainda, em plena rede social, para dar uma de “modinha”, convenhamos, é retroceder. Agindo assim, promovemos uma involução no movimento civilizatório que acompanha o ser humano há milênios. 

O refrão entoado a plenos pulmões não desperta sentimentos, mas sensações primitivas. E, na maioria das vezes, os indivíduos que habitam o planeta, principalmente em grandes aglomerações, são buscadores insaciáveis de sensações, destituídas de contemplação, mas predatórias e devoradoras. Veem no outro, principalmente quando em campos opostos, um constante opositor a quem fustigam para eliminá-lo, de qualquer forma. 

Michel Lacroix, filósofo francês, afirma que passamos por uma época de bulimia das sensações fortes. 

Refere, com propriedade, a diferença entre o grito e o suspiro. O primeiro, fruto de uma descarga brusca da emoção, uma verdadeira explosão. O segundo, resultado de uma emoção lírica, produto de uma interioridade tranquila, quase um recolhimento. A primeira manifestação dá-se num instante e sua duração esbarra numa sucessão rápida de outros tantos momentos. A segunda, perdura até que se transforme de emoção para sentimento. Esta última expressão, com certeza, não acontece num campo de futebol. Como num campo de batalha, em que a preocupação é a sobrevivência com a consequente eliminação do opositor, as arenas atuais têm-se tornado palco de demonstrações incontroláveis da chamada emoção-choque, aquela que coloca o corpo em ação em detrimento da emoção-contemplação que busca usufruir, conforme Lacroix, o sabor do mundo, aquele que se liga a um coração receptivo. 

Íamos a campos de futebol, tempos atrás, para ver o “time do coração” jogar. Uma coisa é assistir a um jogo e torcer. Manifestar-se de forma ofensiva, depredando, incendiando, ofendendo, aos berros, é outra coisa! 

A situação chegou a tal nível que surgiram as câmeras (coisas da modernidade), para que se registrassem e se adotassem medidas visando a coibir tais atos. 

Com certeza, no episódio tão momentoso quanto este do xingamento ao goleiro do Santos Futebol Clube, outras tantas ofensas, iguais àquela objeto da denúncia, devem ter ocorrido na mesma partida, por outros indivíduos que também lá se encontravam. Com relação a estes, as câmeras, ou não existiam nas proximidades, ou não registraram de forma cabal tais manifestações. 

Colocar mais câmeras seria a solução? 

Teríamos, dessa forma, mais denunciados? 

E quando a multidão ofende com palavras de baixo calão uma autoridade? 

E nos demais campos de futebol deste Estado e de outros não ocorrerão episódios idênticos? 

Medidas corretivas devem ser tomadas, com certeza. Não serão, porém, suficientes. A legislação já existe. Já há leis demais, para todos os gostos. 

Acredito que a Educação, num sentido amplo, nos forneça o caminho para a grande transformação que estamos todos a necessitar. Somente ela poderá promover a reinserção de tantos milhões de indivíduos num mundo mais aperfeiçoado, composto por elementos conscientes de sua importância na construção de uma nova civilização planetária: mais justa e fraterna. 

Segundo Luc Ferry, outro filósofo francês, em oposição ao chamado espírito limitado, o chamado pensamento alargado, que defende, é “aquele que consegue arrancar-se de si para se colocar no lugar de outrem, não somente para compreendê-lo, mas também para tentar, num momento em que se volta para si, olhar seus próprios juízos do ponto de vista que poderia ser o dos outros”. 

E continua: 

É o que exige a autorreflexão de que falávamos há pouco: para que se tome consciência de si, é preciso situar-se à distância de si mesmo. Onde o espírito limitado permanece envisgado em sua comunidade de origem a ponto de julgar que ela é a única possível ou, pelo menos, a única boa e legítima, o espírito alargado consegue, assumindo tanto quanto possível o ponto de vista de outrem, contemplar o mundo como espectador interessado e benevolente. Aceitando descentrar sua perspectiva inicial e arrancar-se ao círculo do egocentrismo, ele pode penetrar nos costumes e nos valores diferentes dos seus; em seguida, ao se voltar para si mesmo, tomar consciência de si de modo distanciado, menos dogmático, e com isso enriquecer suas próprias ideias. (livro APRENDER A VIVER – Filosofia para os Novos Tempos – p. 281/282) 



E uma Educação Humanista, fornecida desde os primeiros anos de escola, com ênfase nas diferenças existentes entre os seres humanos, dada a sua natural complexidade, deverá ser o caminho a seguir. 

Todos iguais, todos humanos, porém complexos. A tarefa é entendermos essa complexidade, respeitarmos as diferenças, acaso existentes, para atingirmos a sabedoria de que somos produto de uma origem comum e que, TODOS, por ELE somos abraçados, indistintamente. 



Pois é! O primeiro parágrafo, que iniciou esta reflexão, parece que não foi muito além da união, pela unção divina, entre Maragatos e Chimangos. Mas já é um começo! 

Quanto à moça e a expressão ofensiva, registrada pela câmera, servirão, ambas, para que se reflita sobre o que representa o outro, que nos parece tão diferente de nós, diante de nós mesmos. 

Somos iguais na complexidade. E estamos todos, sob o abrigo DELE, conforme já registrado. 

Temos que aprender esta lição. Está mais do que na hora. 




Fiquem, agora, com um vídeo que ilustra a negritude de que é composto o Brasil. Após, algumas curiosidades acerca do compositor de tantas melodias de sucesso no cancioneiro nacional, bem como do Hino do Grêmio Futebol Porto-Alegrense: Lupicínio Rodrigues. 

Aliás, a palavra grêmio vem do latim gremium que significa regaço, seio, colo. Nele, devem todos caber, como sempre couberam, a começar pelo negro, autor do seu hino, e de tantos outros atletas negros de reconhecidas qualidades.




Grandes personagens da história gremista (da esquerda para direita e de cima para baixo):
Lupicínio Rodrigues, Antunes, Paulo César Magalhães, Tarcísio, Dener, Émerson, Róger, Fernando, Tesourinha, Paulo Cézar Caju, Paulo Isidoro, Everaldo, Ronaldinho Gaúcho, Anderson, Zé Roberto.




Preto, Cor Preta - Jorge Aragão





Os Fagundes – Querência Amada






quarta-feira, 27 de agosto de 2014

À BEIRA DE UM RIO



Não temos a estátua do Cristo. Não temos o mar.

Temos, porém, o nosso Guaíba. 

E o vemos do alto do Morro Santa Tereza. Através das precisas aberturas, que enquadram a paisagem no Museu Iberê Camargo, obra do premiadíssimo arquiteto Álvaro Siza Vieira, também podemos vê-lo. Acompanhá-lo também é possível ao longo da Avenida Edvaldo Pereira Paiva. No Gasômetro e no Cais do Porto nossos olhos esbarram com ele o tempo inteiro. 

Atravessá-lo com as antigas barcas, num caminho de ida e volta até a cidade de Guaíba, era um divertimento. Barcas enormes onde cabiam vários automóveis. Claro, não havia o conforto dos catamarãs de hoje. O visual, porém, era o mesmo. Um rio que desliza suave, que não amedronta. Um rio que é o cartão postal desta cidade. Que mais lindo ainda se torna quando o sol se deita para iniciar o seu sono profundo.

As imagens diárias das inúmeras guerras que se sucedem deixam nossos olhos por demais fustigados. São escombros, uma mortandade generalizada, semblantes retorcidos pela dor, pela fome e pela perda de familiares e de seus bens. E a beleza natural dessas terras, referenciais para esses povos, também estão destruídos. Rios que serviram de cartão postal para suas comunidades e que hoje estão deteriorados pelos artefatos de guerra, ali, constantemente, despejados.

Longe da devastação, produto de guerras fratricidas, por aqui se propaga outra devastação. Esta, com certeza, deveria ser bem mais fácil de ser estancada. Infelizmente, porém, não o é. 
A recente reportagem de ZH, de 26 de julho, confirma esta assertiva.

E pensar que eu me banhei nas águas da Praia de Ipanema, zona sul de Porto Alegre.

A perda para os negócios turísticos é incalculável. Uma orla extensa sem qualquer aproveitamento para o turismo, tal a sujeira e poluição que grassam por todo o rio.

Lixo, lixo e mais lixo.

O Museu Iberê Camargo, o Parque Marinha do Brasil, o Anfiteatro Pôr do Sol, as margens da Usina do Gasômetro, o Cais do Porto, todas estas belezas aos pés da imundície, da podridão, do descaso, do descompromisso com o meio ambiente, com a sua cidade.

Como é possível um rio sobreviver diante de tal devastação! Afinal, bebemos deste rio. Até quando será possível consumi-lo sem que nos prejudiquemos, tal a quantia de produtos químicos necessários para que se consiga sua potabilidade?

Este é um assunto de extrema gravidade e que deve envolver a todos: comunidades, indústrias da região metropolitana, Governos do Estado e dos Municípios.

A Lei nº 12.305, de dois de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, estipulou o prazo de quatro anos para a total implantação dos chamados aterros sanitários em substituição aos lixões. Os rios Jacuí, Gravataí, Sinos e Caí, todos eles formam o nosso Guaíba, que desemboca na Lagoa dos Patos. Mas quantos arroios desembocam nestes rios? Quantos deles também já se encontram poluídos? 


Belas imagens dos arroios de outrora foi o que nos legou Mário Quintana, através dos versos que seguem:





Infelizmente, nem estes se salvaram da poluição. Às vezes, é por eles que começa ela a espalhar-se.

Luiz Coronel, em NOTURNO DE PORTO ALEGRE, do livro Um Querubim de Pantufas, nos versos nºs 17 a 24, exalta o Guaíba, despejando perfume em suas margens e vendo em seu pôr do sol, quase uma miragem.


- Ó cidade, bem não te conhece quem um dia não tenha
se entregue aos teus braços de rio de margens perfumadas.
Breve, eu sei, tenho certeza, muros e anteparos tombarão
e o “Porto dos Casais” e o rio serão uma verdade única e entrelaçada.

Mas quais virtudes, além de tua beleza, te fazem assim
amada e envolvente? Teu pôr do sol, quase miragem?



Como seria belo vê-lo assim. Belo para os olhos de quem não cansa de apreciá-lo, e fornecendo água limpa, própria para um mergulho nas águas de Ipanema. Uma Ipanema que se juntava as outras praias da região: a do Lami, a do Espírito Santo, a do Veludo e por aí...

Um rio abandonado a sua própria sorte, com lixo depositado às suas margen, é o que a cidade observa.

Porém, acreditem, suas águas ainda encontram-se, quase que diariamente, com ele, o Sol, oferecendo-se para o encontro amoroso.

E ele, acariciado pelas suas mãos de seda, deita-se no leito, conforme RELATO DAS RELAÇÕES DO SOL COM AS ÁGUAS DO GUAÍBA, poema de Luiz Coronel, do livro Um Girassol na Neblina, espargindo luz até o final do encontro.




E a cidade, à beira deste rio, agradece o espetáculo que se renova sempre que propício o tempo. 

Na verdade, os cidadãos querem bem mais do que assistir ao espetáculo do pôr do sol às suas margens. Querem, novamente, desfrutar de suas mansas águas.

E a cidade aguarda que o Estado tome as medidas necessárias para a implantação efetiva desta importante política ambiental, acompanhada de uma fiscalização rigorosa pelo seu não cumprimento.

E o cidadão aguarda...

Nós, porto-alegrenses, aguardamos...

Até quando?









Entre o Guaíba e o Uruguai – Noel Guarany