domingo, 10 de janeiro de 2016

PEQUENOS OÁSIS



Sobre a cumeeira, cata o que comer. Lentamente, segue pelo caminho em frente. Vez por outra, para pra cantar. Voa pra lá e pra cá. É a sua ilha.

Lá, vive, alimenta-se, namora à vontade, brinca, faz algazarra, espreguiça-se, dorme. Ultimamente, tem-se aventurado pouco além dos limites conhecidos. Outro dia, quis aventurar-se alhures. Mas, voltou correndo. Ou melhor, voando ligeiro. Não encontrou onde se aninhar.

Aliás, fiquei feliz por vê-lo retornar. Veio em busca da sua casa: uma parreira fechadinha, um mamoeiro, uma bananeira, um limoeiro, uma laranjeira e outro tanto de árvores que dão sombra amiga.

Todos os dias, ele anda por lá. Também, outros tantos que chilreiam sem parar. Todos lindos, todos cantores. Seus nomes? Não interessa.

Sou privilegiada. Vejo as incursões que fazem pelo céu e o retorno ao seu refúgio.

Há quem hoje apenas enxergue um pedaço do céu e que viva entre paredões, transformando a área visível numa faixa de céu e terra por onde, às vezes, ainda se consegue ver a lua. O campo de visão restrito é comemorado quando a lua se encaixa naquele pedaço de céu. O que pode durar alguns minutos. São pequenos oásis.

Eu, por meu lado, perco-me olhando¸ de quando em vez, esse reduto sobranceiro, desafiador, que existe sob meu olhar. Não vivo entre paredões e nem nas alturas. Observo seus moradores. Todos, espécimes em extinção. Não só pela idade deles, como também pela convivência fraterna que existe entre todos: os humanos e os animais. Um cachorro que vagueia livre por um pátio todo seu, meia dúzia de galinhas a cacarejar anunciando suas proezas depositadas lá no ninho, no fundão do terreno, e uma variedade respeitável de pássaros a cantar, nunca esquecendo os papagaios que aparecem quando o dia está a findar. Ah! E um casal de velhinhos a zanzar pelo pátio, esperando a empregada chamar para almoçar. Essa, também, já avançada na idade. Tudo muito bem cuidado. Um espaço encravado, perdido, num mar de prédios.

Na verdade, esses espaços saudáveis, ou oásis como denomino, estão extinguindo-se. Hoje, vivemos amontoados uns sobre os outros. Fingimos que temos espaço. Disputamos um banheirão, num canto do terreno; uns três ou quatro balanços, em outro. E somos dezenas. Às vezes, centenas.

Aliás, até os cachorros acostumaram-se ao cativeiro e às neuroses dos donos. Já andam eles meio neuróticos. O canto característico da galinha poedeira: nem ninguém mais conhece. Não se surpreendam se os pequenos de hoje só conhecerem os nuggets de galinha. Galinha, só por fotografia. Os passarinhos, por sua vez, tendem a se concentrar apenas nos parques.

E as estrelas? E a lua? Que coisa mais cafona!

Um dia, alguém, por acaso, dá de cara com ela. E descobre lá, então, um lugar pra onde se pode, com a imaginação, voar pra sonhar. Pois, aqui, consumiram com todas as possibilidades.

Assim, de alguma janela, entre uma parede e outra, o jovem de hoje conseguirá, por instantes, vislumbrá-la. Descansará seu olhar. Serão minutos de reflexão e lembranças de quando “seu velho” cantarolava as belezas de certa lua prateada. Nesse momento mágico, pegará na mão da amada e, dali mesmo, um longo beijo romperá a madrugada.

É claro que a lua prateada de hoje está mais para partido alto do que pra seresta. E disto este guri entende.

Eu? Dou-me ao luxo ainda de poder acompanhar o passeio da lua, pousando, de quando em vez, o olhar neste oásis que me acolhe com vozes e cantos: todos os dias e noites.

Sim, noites.

Por que não?

Afinal, o som do silêncio da madrugada, também, faz-se presente aos nossos ouvidos, embalando nossos sonhos, que encontram refúgio em nossos oásis secretos e muito pessoais.


E o luar?

Bem, segundo o poeta Quintana, duas versões são possíveis, a saber:




Agora, quanto a mim, somos bem mais íntimos. Deito com ele, sempre que possível. Nas vezes, é claro, em que ele se espalha sobre meu leito.

E, para não ficar rotineiro, é de vez em quando.

Por isso, deixa saudades!






Lua Prateada – Reinaldo





sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

LEMBRANÇAS...



Ele foi-se. Passou. Como tudo que passa, deixou lembranças.
Assim como sempre foi.


Era uma vez uma cerca de hortênsias junto ao quarto.

Era uma vez uma escada feita pra sentar e mais outra para galgar. Uma goiabeira para colher e um balanço para brincar. Um colega para admirar e outros tantos para conviver. Alguns poucos amigos para contar e outros tantos para somar. Algumas histórias para reviver e outras para lembrar-se de esquecer.

Quão importante é lembrar!

Lembrar-se dos detalhes, das cores, dos cheiros, dos sons, dos encontros e desencontros. Dos perigos possíveis e das certezas tão incertas. Da mãozinha que se escondia do frio e da outra que buscava o parceiro.

Lembrar-se de quem soube maltratar, por que não? Mas, também, de quem soube acarinhar, proteger e amar.

Lembrar-se da visão primeira do mar e do sol. E da lua como inspiração para sonhar. Bem antes, é claro, de servir-se dela como coadjuvante do ato de iniciar-se nas vielas do amor.

Lembrar-se das ruas, becos e descampados percorridos em cumprimento da obrigação diária de estudar. Das distâncias alcançadas que, lembradas, revelam o êxito da caminhada.

Nada foi em vão. As lembranças, também, não o são. Elas são o alimento que nos mantêm vivos, reflexivos e criadores de novas lembranças, que se vão somando a cada novo ano que se anuncia.

Novas lembranças, ainda fresquinhas, deixaram um legado a todos.


O mar, a lua, o sol ou as estrelas estarão diferentes?

Se estiverem, guardemos a percepção individual do seu constante modificar. Se não, acompanhemos o seu permanente poder de nos encantar.

Lembranças de ontem são o combustível para os sonhos que se desenham a cada novo ano. Elas não representam o passado apenas. Elas também projetam a possibilidade de renovação, se as trouxermos todas ao novo ano que nasce.

Se forem boas, podem ser repetidas.

Se não, serão úteis para nos guiarem por melhores caminhos nos próximos 365 dias de qualquer ano em que se esteja.



Portanto, abracemos todas as nossas lembranças: aquelas distantes e as mais próximas.

Com elas cercamos o nosso eu de maiores e melhores chances de vencermos o embate diário a enfrentar.

O ano que se foi já é passado. E, é claro, deixou lembranças.

Bem-vindo 2016!
Logo, logo...
Uma nova fonte de lembranças nascerá.


E àqueles momentos meus
Que foram teus
Resta, agora, apenas lembrar.


Ou, como diz a letra do conhecido samba-canção Nossos Momentos: recordar.
Pois o mar, quando chega, apaga tudo levando as palavras escritas na fria areia.


Mas, não as lembranças!





Nossos Momentos – Gal Costa







domingo, 18 de outubro de 2015

PELA VITRINE

Como sempre faço, paro junto à vitrine daquela joalheria. De vez em quando, passo por ali. E o olhar, invariavelmente, pousa sobre as joias expostas. É muito brilho, muito ouro, muita beleza: tudo junto. Um dia, ainda vou ter uma dessas...

Pela vitrine espelhada bato os olhos naquela dupla, minha conhecida. Sentadas em um banco, estão já se aprontando para iniciar a caminhada por todo o shopping. São idas e vindas que se estendem por aproximadamente uma hora. Há tempos atrás, a imagem captada por mim, que virou um conto, era assim:


O passo de uma é vacilante. O corpo, perigosamente, inclinado para frente. Quem a acompanha é miúda, magra, e adota o mesmo estilo inclinado, só que ao contrário, pra trás, para compensar. Mãos, também pequenas, que levantam, com um leve toque, um rosto que pende, teimosamente, para baixo. E lá vão elas... É, com certeza, um grande esforço para ambas. Nunca as vi conversando. 


Houve época em que as encontrava caminhando por uma rua próxima. Também silentes, mas em meio, muitas vezes, ao ruído saudável de pingos de chuva sobre os telhados ou por entre raios de sol. Por vezes, debaixo do canto de variados passarinhos e de barulhentos papagaios.

Não sei por que não as vejo mais por lá. Trocaram de endereço.

Imaginava, como imagino ainda agora ao vê-las pela vitrine que, pela antiga rua, poderiam, quem sabe, trocar palavras, não apenas olhares. O brilho no olhar da mais velha, antes, existia. Hoje, não o vejo mais. Acompanho a dupla há algum tempo.

Antes, quando as via passar, observava o desvelo com que a mais jovem cuidava da mais velha, carregando-a com seu braço. Era uma dupla que se entendia pelos olhares, pelos gestos, pela aproximação, pelo afeto. Aquela rua era o lugar por onde ambas celebravam, diariamente, a existência, a solidariedade, a troca mútua, embora silenciosa.

Hoje, quando passo pela joalheria, vejo a mais jovem dispersa em pensamentos em frente àquela vitrine que me encanta. É como se as vitrines, todas, precisassem do olhar e da atenção da mais jovem. A mais idosa é como um estorvo ao lado da guardiã. A cabeça pendente não mais levanta. E o olhar? Perdido está no belo ladrilho do shopping. Estão juntas sem estar. Estão próximas como imagem. Estão no mesmo espaço, mas não mais no mesmo lugar. Seus olhares não se visitam mais.

E aqueles jacarandás, que se iluminavam ao vê-las passar, buscam outros passantes que ainda celebrem a felicidade de ser com o outro, de não ser sozinho com outros.

Afasto-me, pois lá vêm elas em direção à vitrine iluminada. É como se viessem beber da luz que se espraia daquela vitrine.

Sigo eu com a sensação de que estamos no mesmo barco, meio que à deriva, limitados ao que os nossos olhos acreditam enxergar como realidade.

Esboço um sorriso virtual e me perco pelo burburinho. Este, real. É o que imagino enxergar.

Será que também este é virtual?

Decididamente, anda tudo muito irreal...



Aliás, nas VITRINES de Chico Buarque, parte da letra poética diz que:



E, mais adiante, mistura nossos “eus” ao poetar:




Confesso que torço para que elas voltem a circular por entre os jacarandás. Mesmo em dias de chuva mansa, poças d’água serviam de espelho a refletir o caminhar vagaroso, o semblante ainda esperançoso. Torço para que a vitrine que as acolha seja de outra espécie. Aquela espécie que nos identifica no olhar do outro, aquela que nos torna menos virtuais e mais reais.



Que sejam um clarão de luz própria: é o que desejo.






Chico Buarque - As Vitrines