quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013




 A ÉPOCA DOS 3 EM 1

Clarissa folheia com vagar o velho caderno, o único que sobrou de tantos.

Vai virando as folhas, uma a uma, parando, às vezes, em alguma que lhe chama a atenção pelas marcas deixadas no papel. São borrões, pingos eventuais de tinta de caneta ou refrigerante, e tantos outros sinais ali existentes: guardados ainda na memória.

Porém, um, em especial, que aguarda por ela mais para o fim do caderno, a faz recordar com ternura. Ternura por si própria ao ver-se retratada, naquele momento da existência, já tão longe, por aquela mancha bem no meio da página. Aquela lágrima caíra bem ali, naquele trecho do texto onde escrevera a palavra “amiga”.

Volta no tempo e relembra a tristeza que sentiu ao escrever que Soraia, sua melhor amiga, trocara de colégio e, por isso, não seria mais sua colega de aula.

O tema da redação, proposto pela professora, tinha sido “O Valor de um Afeto”. E Clarissa tinha escolhido a amiga Soraia como alguém a quem dispensava um grande afeto. Infelizmente, depois de cursarem juntas várias séries, não mais poderiam manter aquela diária e estreita amizade.

O registro daquele intenso momento de emoção estava ali, para sempre, registrado através de uma mancha sobre a tinta, nascendo um borrão, causado pela lágrima caída de olhos ainda tão jovens.
CONGELE A CENA.


Hoje, a mesma cena da lágrima ficaria registrada? Não, não teria registro.

Cairia sobre uma tela de plástico, resistente a riscos, resistente à água, resistente a lágrimas. Resistente ao registro da emoção daquele instante único.

A impessoalidade de um tablet, a aridez de uma tela, embora suave ao toque, não nos permite manter mais registros palpáveis, visíveis, de um momento de emoção extravasada, literalmente derramada.

Dispensa-se, hoje, o caderno, o lápis (ou caneta), a borracha. Temos o tablet, temos o simples toque dos dedos sobre a tela. Ah, e o mouse, também. E podemos gravar tudo num Pen Drive.

Nossos textos, nossas criações estarão todas lá, armazenadas. A autoria estará preservada, é claro. Mas a emoção do ato de criar, as etapas que se vão somando, com eventuais garatujas, riscos, desistências reveladoras na escolha da melhor palavra, reticências e sublinhados não terão mais registro.

Imaginem tantos autores clássicos, sem os seus manuscritos. Que perda irreparável seria para quem procura entender melhor o fazer poético, a lida com a palavra escrita mantida por tantos escritores de nomeada.

O processo de criação fica muito mais evidente em apontamentos e em manuscritos do que ficaria em textos registrados num tablet. Suas anotações à margem do texto, bem como a própria letra do escritor, são reveladoras de características peculiares de seu fazer textual, que nos dão a sua visão pessoal dos seus escritos.

E se falarmos em alunos que iniciam seus estudos no Ensino Fundamental, em particular, é importante que se capacitem a usar a mão para formarem, letra por letra, palavras que criarão frases, que comporão textos. Textos que contarão estórias, suas e de outros, com a emoção que é peculiar a cada um, num registro visível, palpável e totalmente pessoal dos sentimentos que nos diferenciam da máquina. Pois, não somos máquinas. 
Somos humanos e elas devem de estar a nosso serviço, tão somente.

Não esqueçamos que ainda somos seres pensantes, não somos idiotas e, portanto, a tecnologia tem que ser vista como mais uma ferramenta, apenas. Caso não seja assim entendida, de nada valerá o investimento em seu desenvolvimento.


Dito isso, boa volta às aulas.

Não importa que vocês, alunos, não tenham tablet. O importante é que tenham o que escrever, que adquiram a capacidade de escrever bem, de forma correta. E que aprendam a pensar, a refletir. Para isso, é imprescindível a figura do professor. A máquina servirá para auxiliar o trabalho de alunos e professores. Abrirá, com certeza, o mundo do conhecimento, das novidades, das pesquisas e tudo o que venha a ampliar a visão das coisas que os cercam, já trazida pelos alunos para sala de aula.

O bom e velho caderno, pelo menos nas séries do Ensino Fundamental, eu acredito que seja, ainda, um companheiro fiel. Clarissa não se emocionaria diante de um tablet, se fosse encontrado num canto da casa, caso existisse em sua época. Suas lágrimas não teriam tido registro. Sua emoção não se teria renovado. Seu passado seria apenas uma vaga lembrança. Sua história: um pouco mais difusa pela ação do tempo.


 

O Caderno - Toquinho




Fragmentos manuscritos de conhecidos autores nacionais:



Euclides da Cunha
Ferreira Gullar

João Cabral de Melo Neto

João Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa

Machado de Assis

Mário Quintana

Millôr Fernandes


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Comentários via Facebook:


Scyla escreveu: "Olha que já é madrugada, amiga, mas a tua estrela cronista estava aí brilhando, iluminando tudo e eu resolvi que não deixaria para amanhã. Até porque o amanhã é incerto para todos nós. E com esta pressa, esta ansiedade, fui conferir O CADERNO de Soninha Athayde, que depois de toda a belíssima leitura, depois de queridas lembranças, nos dá uma aula de "convivência pacífica" entre o novo e o nem tão antigo e sempre encantador método de guardar palavras, textos, poemas."
Scyla escreveu: "Fala de tudo o que permeia a atmosfera escolar, nos leva para dentro da sala de aula, nos apresenta o professor ( indispensável) e nos coloca diante das novas ferramentas de aprender e de ensinar, pesquisar, redigir. Linda crônica e o presente na voz de Toquinho, O CADERNO, de Vinicius de Morais. Obrigada por nos oferecer o teu talento, Soninha, e parabéns! Bjs"





sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

VAGA GARANTIDA
                           OCUPAÇÃO PERMANENTE

CINZAS?

O melhor mesmo é soprá-las ao vento sobre parques, rios, lagos e lagoas: sobre a Mãe-Terra, testemunha ocular dessa nossa tão breve passagem.

Na entrada, alguns são como que jogados nesse mundo. A sua vaga poderá resumir-se a um vão de escada ou a uma laje embaixo de uma ponte. A vaga estará garantida naquele local ou em outro qualquer, pois é ela gratuita. Não precisa ser comprada. E vai sendo trocada quando houver necessidade. E haverá, com certeza.

Obstáculos aparecerão. Mas com todos os pertences juntos ao corpo, será mais fácil encontrar outro lugar. Afinal, dessa forma, com quase nada, esse ser veio ao mundo. Isso se torna “quase” natural.

Mas e quem tinha vaga garantida, fixa, de sua propriedade, e perdeu?

Será diferente?

Em princípio, a situação é absolutamente a mesma. A vaga é gratuita e, certamente, quem vier a precisar de uma a encontrará em algum lugar.

A indagação é: o que vai fazer com ela?

Vai ocupá-la apenas? Ou vai construir sobre ela alguma coisa?

Há quem se insurja contra tão reles condição humana. E passe a construir do nada algo para sobreviver, pensando não só em seu próprio benefício como ainda estendendo aos seus iguais um alento nessa caminhada.

Foi o que fez Robson Mendonça, o conhecido “Bigode”, gaúcho que perdeu tudo: bens e família. Os bens, vítima que foi de um sequestro onde perdeu todas as economias, e a família, esposa e dois filhos, mortos em um acidente de trânsito. Quer pior estória?

Foi jogado às ruas da cidade de São Paulo, tornando-se um morador de vielas até então totalmente desconhecidas.

Mas da vaga, que lhe é assegurada pela Mãe-Terra, quis sua fé, vontade e persistência criar uma bandeira em favor dos desvalidos. E ela materializou-se no Movimento Estadual da População em Situação de Rua, da qual é Presidente.

Este Movimento existe, na cidade de São Paulo, desde o ano de 2005. Adquiriu tal visibilidade que várias entidades associaram-se ao líder do Movimento, o ex-morador de rua Robson Mendonça, que coordena a entidade. O aluguel da pequena sala, onde funciona a sede, é pago pelo escritório em que atua um grupo de advogados. Há ainda a ajuda de vários ex-moradores de rua, como voluntários. Ao que se tem notícia, nenhum órgão público tem qualquer ingerência ou presta qualquer apoio ao Movimento. Pelo contrário, usam-se da entidade para encaminhar moradores de rua que necessitem de documentos, de orientação jurídica, de encaminhamento para cursos profissionalizantes e para instituições que atendam dependentes químicos.

Além disso, Robson percebeu, a certa altura da vida, a importância da cultura e criou a já conhecida “bicicloteca”, um projeto que já se estende a vários bairros da cidade de São Paulo. Tudo feito a partir de doações de cidadãos e de entidades civis.

Para melhor entendimento do projeto, seu autor, seus colaboradores e seus protagonistas, é interessante que se acessem os vídeos abaixo, bem como as matérias que encerram essa crônica.

A Revolução dos Bichos, de George Orwell, segundo palavras de Robson, foi decisiva na tomada de posição como cidadão. Hoje, ele mantém saraus em que participam moradores de rua, capazes também de poetar.

Igualmente nós, por aqui, segundo Celso Gutfreind (p.2, ZH de 16/02/13), na Vila de Passagem, temos um projeto e voluntários que auxiliam crianças a representarem o que conhecem no dia a dia, mas também aquilo com que sonham. Um exercício perfeitamente possível de se tornar realidade, desde que alguém as ajude a manterem vivo o sonho e a possibilidade de mudança e transformação.

Como diz Celso, mesmo a partir do meio inóspito. Para que adquiram instrumentos para “agarrar a vida”.

Até quando seja possível.

O fato é que nossa ocupação, por aqui, é permanente. Depois que aqui caímos, daqui não mais saímos. E estamos a falar da matéria, apenas.

Alguns continuarão ocupando uma vaga visível e onerosa. Outros, nem tão visível, nem tão onerosa. Mesmo assim, o Estado encarregar-se-á dessa indigência que permanecerá por todo o sempre.

O bom mesmo é que essa permanente ocupação se resumisse, de forma invisível, a uma nuvem que se espalhasse por esses pagos. Mas isso também é oneroso.
 




O importante é que nossa passagem, enquanto seres vivos, é transitória, mas nossos restos e, em especial, nossa presença,  na lembrança dos mais chegados, é permanente.

Poeticamente falando, somos um sopro de cinzas que alimentará qualquer praça que nos abrigou um dia. Ou recolhido sobre um banco, como se cama fosse, ou trilhando seus caminhos, sorvendo um bom mate. Ou na indigência ou na plenitude das nossas conquistas.

Que essas cinzas voem ao sabor do vento. Porque, com certeza, cairão por aqui mesmo. Essa ocupação é permanente, meus amigos.

Portanto, façamos algo de útil antes que nos transformemos em cinzas. Ocupemos nossa vaga com dignidade, como faz Robson Mendonça.

E, finalmente, que ainda nossas cinzas alimentem as veredas desse chão.

 E que a poesia nos inspire, trecheiros ou não, a seguir em frente. Sempre em busca de um sonho. Porque sonhar é preciso. Porque, também, é preciso cantar, mais do que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade, como diz o mestre Vinicius de Moraes e seu parceiro Carlos Lyra, na conhecida “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”.




Robson Mendonça conta sua jornada de agropecuarista a líder - TV Cultura 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013



Ó ABRE-ALAS...

A época é oportuna. A hora é agora. Aproveite os próximos dias para exercitar essa necessidade que nos mantém mais vibrantes, mais esperançosos.

Abra as gavetas da alma, retire os trapos, sim, desde que sejam bem coloridos. Desnude-se da tristeza, vista-se por fora e por dentro com o que de há muito estava jogado no canto. Transforme-se num outro personagem. Escale muros, rompa paredes e se jogue de corpo inteiro, num mundo do faz de conta. E faça de conta que é bom de samba no pezinho. Se não conseguir, saracoteie mesmo assim.

Permita-se esse devaneio. Inspire-se na alegria contagiante dos passistas, dos ritmistas, dos puxadores de samba, da escola como um todo.

Não importa onde você esteja: se em casa ou na avenida. Introjete essa alegria contagiante e viva, por esses poucos dias, apartado da tristeza. O Carnaval serve para isso. São poucos dias. É acessível a todos e vale como uma terapia. Muito cuidado, é claro, para não exagerar. Tudo o que é em excesso prejudica.

O grande risco é tornar-se mais alienado do que já se é normalmente. Se a imersão for muito profunda, levará um tempão para a recuperação. E aí já teremos atingido o próximo Carnaval.

Mas como não sucumbir à necessidade de sonhar?

Quando a sociedade civil organizada parece não encontrar mais rumo, nem seus cidadãos, aqueles que efetivamente constroem o país com o seu trabalho honrado, mais amparo no atendimento às necessidades básicas de saúde, educação e segurança, o que esperar dos outros 361 dias?

Aproveitemos do Carnaval, pelo menos, a alegria, a capacidade de sonhar, a capacidade de transformar sucatas em verdadeiros castelos, carregados de sonhos e de esperanças.

Mas que não herdemos apenas o sonho pelo sonho, que nos alimenta a alma, mas não nossas famílias, tampouco nossa cidadania.

Abramos bem os olhos para o rumo que as coisas estão a tomar.

Que a zona de dispersão, que acompanha toda escola de samba, não espelhe o comportamento do coletivo. Porque nós somos o coletivo e devemos estar unidos em busca de soluções para os graves problemas que afligem nossa sociedade.

Parodiando o refrão da antiga marchinha carnavalesca que diz:

“Ó abre-alas que eu quero passar”, digamos:


Ó ABRE-ALAS QUE EU QUERO SONHAR

Ó ABRE-ALAS QUE EU PRECISO SONHAR COM UM NOVO TEMPO





 
 
 
 
 
Ó Abre-Alas(Chiquinha Gonzaga) - Leandro Braga / Marlene, Emilinha e Angela Maria