terça-feira, 4 de março de 2014

RECARGA CONCLUÍDA


 
Pode tirar da tomada. Pode soltar os tamancos. Pode esticar os pés. Relaxe, pois é hora disso.
E nesta terça-feira, depois de uns dias meio nublados, ela voltou. Num céu azul, no final da tarde, lá está ela, novamente, crescente. Apenas um fio, ainda. Da janela, sentada em uma cadeira, Bia estica o corpo para vê-la melhor.
Por quatro dias, o envolvimento foi total. Pra quem não sabe, Bia está voltando, como tantos outros, da avenida. Não só acompanhou o bloco carnavalesco de seu bairro, dando força para o pessoal como, também, e principalmente, desfilou na sua escola do coração.
Ela e outros tantos milhões de pessoas divertiram-se, sonharam, se energizaram para enfrentar as dificuldades que surgirem ao longo do ano. Nesse período, o do Carnaval, enquanto alguns curtiram o Oscar, milhares sucumbiram em guerras, ou, ainda, resistem às atrocidades que persistem nos milhares de conflitos pelo Planeta.
Por aqui também os homicídios se somaram aos latrocínios, aos assaltos, aos furtos, aos acidentes ocasionados pelo excesso de velocidade, às fraudes, aos desvios de toda a ordem, aumentando as estatísticas que amedrontam, que nos tornam, a cada dia, menos seguros.
Oxalá nunca chegue até nós a matança indiscriminada de uma guerra ou mesmo de uma revolução que se alimenta dos mais indefesos, daqueles que servem de bucha de canhão para apetites sempre discutíveis.
Assistindo a alguns programas sobre comunidades, em que o samba é o principal elo de agregação, observa-se o cunho social que ali se encontra alinhado à simples diversão de compor e cantar.
Pessoas de profissões diversas, credos diferentes, todos reunidos num abraço que preserva uma cultura, que se impôs e se mantém. Graças ao trabalho de membros dessa mesma comunidade, a cultura do samba tem perpassado gerações.
E isso é o que mantém milhares de comunidades pelo país afora agregadas e, espiritualmente, fortes para os desafios que são constantes e diários. Seres gregários precisam de outros iguais para sentirem-se mais seguros e felizes, embora as carências materiais ainda persistam.
Para os que não carecem de bens materiais nessa mesma proporção, talvez, seja difícil entender o porquê da tão grande importância de uma comunidade que se reúne para cantar, tocar, curtindo momentos de descontração. Claro, há quem descontraia, sozinho, ouvindo Beethoven.
O fato é que é imprescindível que se guardem momentos para esse recarregar de baterias. Logo ali adiante, essa energia será bastante necessária.
Lembrei-me de um cidadão português, padrinho de um casal de brasileiros, na véspera do casamento, que disse, com sotaque característico, perguntado sobre onde andavam os noivos: “estão a recarregar as baterias”.
Digressão à parte, o importante é creditar a esses encontros de samba e ao próprio Carnaval essa função de energização do corpo, da mente, dos sonhos, da vida que nos exige, a cada dia, mais força, para que a esperança se mantenha firme e forte.
E essa energia é tudo de bom!
E com ela virá a crença em dias melhores, com mais tolerância, mais fraternidade, porque o barco é um só e já está se tornando pequeno diante de tanta tecnologia. O que parece estar longe de nós pode, a qualquer momento, nos envolver de forma comprometedora à nossa sobrevivência.
Por ora, curtamos as nossas rodas de samba e o nosso Carnaval, que também é cultura.
 
Ah! A lua ainda está lá. Agora, um fio bem mais brilhante. Anoiteceu.
A RECARGA, POR ORA, ESTÁ CONCLUÍDA.



 
 
 
 
 
 

Troca de Energia/Samba de Coração - Péricles 



 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

PARA QUE TUDO ISSO?

Confessa que já anda meio deslocado. Até já mudou de data. Nem acontece mais no mês tradicional. Parece quererem que o esqueçam, ou que, pelo menos, não o queiram com tanta animação.
Os mais abastados, com certeza, escapam para outras paragens mais tranquilas, quando ele se aproxima.
Os que permanecem pela cidade aproveitam para um descanso mais espichado. Comodamente instalados, talvez o assistam pela televisão.
Quem não lhe abandona é mesmo o povão. Ah! Os salões das sociedades, ao que parece, também ainda o curtem.
Sua utilidade fica flagrante junto aos que menos tem. Sua importância é diretamente proporcional àqueles que pouco tem. Serve ele de compensação por tantos dias em que se tem tão pouco, em que se é tão menos.
Daí sua extrema importância.
Ele serve para muitos descansarem, outros muitos lucrarem e muitos milhões sonharem.
E o sonho é necessário. O sonho serve para desafogarmos mágoas, medos e tensões. Mas, também, serve para projetarmos caminhos possíveis, alternativas que se mostram ao acordarmos em alguma manhã diferente, de algum dia diferente.
Serve também o sonho para vestirmos uma fantasia majestosa e nos sentirmos reis. Afinal, um cetro e uma coroa não são para qualquer um. E esse sonho nos impele à construção de toda uma estória que, com começo, meio e fim, nos contará a vida, a obra, as façanhas, as supertições e todo o acervo humano, conquistado por séculos, tudo junto, contado e cantado numa única noite.
É! O reinado dura pouco. Mas, o quanto é importante!
E não é de circo que se está a falar. É de identidade, de participação, de superação, de sublimação para fatos importantes, não resolvidos, que se apequenam, frente ao espetáculo daquela noite. Ou se agigantam, dependendo do enfoque social trazido à cena.
Quando se escolhe um escritor para homenagear, que é da terra, cujas personagens forjadas são criaturas conhecidas nacionalmente e que traduzem tipos e formas de pensar, característicos do povo onde estão inseridas, é tudo de bom!
E é isso que a vermelho e branco, a Escola Imperadores do Samba, leva para a avenida no próximo dia 4 de março.
A Velhinha de Taubaté, coitada, já desaparecida, estará, porém, presente na avenida para lembrar-nos do grau de decepção que sofreu, depois da crise do mensalão, entregando os pontos, tenho certeza, antes da hora. Ela que sempre acreditava nos “governos”, quaisquer governos, apresentando sempre uma posição favorável a eles, instituídos, impostos, conduzidos, negociados ou eleitos.
Por outro lado, a socialite ravissante Dora Avante, ou Dorinha, graças a Deus, continua firme e forte, aparecendo de quando em vez com a Tati Bitati, destilando, através de seu discurso, a ironia sarcástica de seu genial criador.
Já Ed Mort, antigo detetive particular, sempre sem dinheiro, com seu famoso “escri”, de escritório, em Copacabana, cercado de baratas e do famoso rato Voltaire, deixa saudades.
E as Cobras, famosa coletânea de tiras, publicada em 1997, de circulação em alguns jornais brasileiros, que tinham como personagens o famoso Queromeu, o corrupião corrupto (tão atual!), além das lesmas Flexa e Shirley e o não menos famoso Durex, sempre a favor do governo em vigor!
E pra fechar o espetáculo o Analista de Bagé, figura caricata de um gaúcho metido a psicanalista. Sempre acompanhado por Lindaura, sua assistente, pronta a ajudá-lo em “todas” as causas e por “todos os meios imagináveis e inimagináveis”. Aprende-se com ele que o principal remédio para os males e dores subjetivas é o conhecido “joelhaço” que, aplicado no lugar correto, faz o vivente esquecer as dores “menores”, deixando, “de vez”, de frescura. Agora, se for mulher o paciente, as técnicas serão outras, aprendidas, acredita-se, atrás dos galpões.
Ora, depois dessa promessa de desfile, com criador e criaturas fazendo o espetáculo, a pergunta inicial pode ser devolvida com outra pergunta para esse senhor, já bastante idoso, que se chama Carnaval.
Para que serves? Deixe que eu responda.
Para que o povo armazene forças para matar um leão por dia, para que não perca a esperança frente aos embates que se seguem pelo ano afora, para que mantenha a autoestima em alta, para que o bom humor não o abandone, para que o sorriso do filho possa significar a esperança de dias melhores, para que saiba da sua força na transformação, para melhor, das instituições e para que saiba reivindicar, dentro da legalidade e da ordem, os seus direitos de cidadão.
Tudo, da mesma forma, como faz nos desfiles: interpretando os personagens da sociedade, cuidando da formação das alas, controlando o tempo despendido para cada evolução, desfilando no ritmo fornecido pela bateria, não atravessando o samba, compreendendo e respeitando as regras que o desfile exige.
Tudo para aprender a percorrer a avenida no compasso das batidas do coração, com segurança e coragem, rumo a uma melhor condição social que passa, necessariamente, pela correta interpretação do que o cerca.
E isso só se consegue com educação e cultura.
E o Carnaval é um pouco disso tudo.
Mas não é tudo. Há, ainda, um longo caminho a percorrer.
Por ora, armazenemos um tanto de energia nesse dia 4 de março, pois os dias, que se seguem, prometem.
Parabéns à Escola de Samba Imperadores do Samba e ao seu escolhido, o nosso Luis Fernando Veríssimo, para tema do samba-enredo desse Carnaval de 2014.
Um bom Carnaval a todos!





Clipe Oficial do samba-enredo da Escola de Samba Imperadores do Samba para 2014 





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

SEU SONHO ERA BEM OUTRO!

Foi muita frustração! Estava tudo acertado. Ele seria ela. Bela, colorida, variada nos matizes. Por um erro, que não sabe bem de quem, acabou na mesma família delas, mas com atributos que dispensaria, sinceramente.
Com certeza até abriria mão da coroa que lhe outorgaram, só para ser admirada, olhada, cultivada com todo o carinho.
Por vezes, se insurge, pois destoa, em beleza, da família a qual pertence.
Se a coroa não lhe traz benefício algum, o que adianta ser rei!
É um rei frustrado, pois seus súditos, embora gostando dele, por vezes, machucam-se ao tocá-lo. E ele gosta de ser tocado, puxa vida!
Tem o corpo todo espinhoso e ressequido e sua maciez está tão escondida que causa esforço e grande cuidado a quem precisa desnudá-lo. Possui farpas pelo corpo afora.
Na verdade, nunca conseguiu conformar-se com essa situação.
Além disso, guarda uma estória bem desagradável, que lhe contaram há anos atrás.
Pois um irmão seu foi causador, sem querer, de um ferimento, que teve como consequência a eliminação desse pobre irmão da vida daquela pequena vítima.
Existia uma menininha que gostava tanto desse seu irmão, mais tanto, que o consumia diariamente. Era um, inteiro, por dia. Ao final de vinte e poucos dias, na língua da pequena vítima surgiram pequenos cortes com pontos de sangue.
Vejam se isso aconteceria com o consumo diário de uma banana, uma maçã, uma pera ou uma ameixa. Poderia estar comendo até hoje sua porção diária, sem problema.
Mas a paixão é cega. Atirou-se, de cabeça, no consumo diário de um abacaxi. E deu no que deu.
Na realidade, esse coitado, pertencente à família das Bromélias, vive acabrunhado. Não é belo como suas irmãs, nem tampouco benquisto.
Vejam bem o que registra o "amansa-burros" sobre este vocábulo:

* Bras.Gír. – coisa trabalhosa, complicada, embrulhada, intrincada (Antes de viajar, teve vários abacaxis para resolver);
* “Dois meses depois, ela telefona em pânico: ‘Vou ser mãe!’ Do outro lado da linha, Sandoval explode: ‘Que abacaxi!’ E, então, começa a evitar a pequena.” (Nélson Rodrigues, 100 Contos Escolhidos. A Vida Como Ela É, II, pp. 57-58);
* Descascar um abacaxi: resolver uma dificuldade, um problema.
                                            (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 5ª edição)


Na verdade, nem sabe bem por que existe.
É gostoso? É.
É cheiroso? É.
É de difícil trato? Reconhece que sim.
Pergunta-se, até hoje, por que não lhe deixaram seguir o caminho das companheiras da espécie, por que o impediram de servir de enfeite nos avarandados?
Já tentou convencer-se de que vale mais, de que é mais importante do que as belas da sua espécie.
Analisa-se e percebe que cada um de seus “olhos”, que estão espalhados pelo seu corpo, corresponde a uma flor. Ele é, portanto, um conjunto de flores que se fundiram em um grande fruto de um só corpo. E pra compensar sua transformação em um fruto, e não uma flor, puseram-lhe no topo do corpo uma coroa.  Foi só pra enganar. Ela não lhe serve pra nada. Pelo contrário, é por ali que começam os primeiros sinais de sua destruição. É quando lhe arrancam esse sinal de nobreza, à força, ou ele apodrece, indicando a sua já próxima e completa deterioração. Por conta da beleza dessa coroa, ele é conhecido como o rei dos frutos. Alguns o chamam de rei das frutas. Imaginem! É pra enlouquecer!
Não tem certeza, mas acha até que vive menos tempo do que sua irmã, a bromélia em flor. Esse pensamento, que o atormenta, deve ser por conta da baixa autoestima que carrega consigo.
Ela até é nome de música da Bidê ou Balde, conhecida banda gaúcha.
Ele, depois de muito procurar, só encontrou referência a sua existência através da música Piuí Abacaxi. Assim mesmo foi só pra rimar com “por aí”.
Vejam:
“Piuí Piuí, Piuí Abacaxi,
Choc, choc, choc, choc por aí."

É! Pelo menos a letra da música fala em sino que toca. Acredita que aquele seu irmão, que salta da frente do vagão na descida do trem, é o tal apito: o Piuí.
O barulho do trem, por outro lado, lembra o som cadenciado do seu nome: abacaxi... abacaxi... abacaxi... abacaxi...
Isso não é o bastante, porém.
Ainda vai conferir melhor aquele vídeo.
Que tristeza!
Diante desse quadro, confessa que portar uma coroa é muito pouco.
Inconformado, declara-se ser uma fruta a contragosto.
Seu sonho era bem outro!

*Crônica elaborada a partir da frase “O ABACAXI É FRUTA A CONTRAGOSTO”, ideia guardada no baú da memória de Luis Fernando Veríssimo e revelada na crônica de sua autoria publicada, em 16 de fevereiro de 2014, no jornal O Estado de São Paulo, Caderno Cultura.
Em face da sua confissão de não ter a menor ideia do que pretendia dizer com ela, o que eu duvido por conta da genialidade que o faz meu ídolo, tentei achar uma explicação para a referida frase. Espero ter conseguido.


Bromélias – Bidê ou Balde


Piuí Abacaxi – Patati Patatá