sexta-feira, 10 de outubro de 2014

UMA SOMA VALIOSA

Uma parede de hortênsias adornava a janela do quarto. Belas flores azuladas também cobriam a parede lateral da casa, que se enfeitava ao longo de praticamente o ano inteiro. Tudo para contrastar com a cor da parede verde-musgo e com uma janela de cor verde-clara, parecendo mar. Vez por outra, apareciam algumas florzinhas cor-de-rosa, para ainda mais bonito ficar o conjunto. 

Uma imagem fotografada pelo olhar ao longo dos anos. Registrada para sempre ficou. Tornou-se repetida em desenhos com paisagens que Aninha reproduzia, quando solicitada pela professora nas aulas de desenho. Seus desenhos de céus e morros verdejantes primavam pelos azuis e verdes intensos, embora as hortênsias não aparecessem. Restara apenas a combinação de cores e a sua intensidade.

Aninha e a Natureza sempre dialogaram muito bem. Embora citadina, a sensibilidade para o movimento seu e de outros seres a sua volta sempre esteve presente. Os sentidos aguçados sempre tiveram lugar na primeira classe de suas observações e sensações.

Como explicar o ouvido tão apurado a ponto de ouvir uma folha seca bater de encontro ao chão? 

E os barulhos e sons facilmente percebidos e diferenciados por ouvidos tão despertos?

E o cheiro de terra molhada a prenunciar chuva próxima, detectado a tempo de correr a recolher as bonecas para lugar seguro?

E o constante colocar-se na ponta dos pés como se uma dança estivesse por iniciar-se a qualquer momento? O pediatra reconhecera, à época, que a tal menina seria uma boa dançarina, tranquilizando a mãe preocupada com este gesto habitual da filha. Tal ritmo à flor da pele seria fundamental nas aulas de música, que se sucederiam anos após.

E o que dizer da Mindinha?

Entre frutas, hortaliças e galinhas, ela, a Mindinha, sobressaía como a preferida da menina. De tão velhinha, um dia desapareceu. Ao que parece, foi entregue a uma vizinha para que não fosse sacrificada pela família de Aninha. Lá, deve ter se transformado em um suculento prato.

As emoções iam-se somando e capacitando Aninha ao enfrentamento com o inesperado.

E a Isabel, vizinha de cerca, com quem trocava aneizinhos que acompanhavam as balas azedinhas da época? 

E a colmeia de abelhas, bem no fundo do pátio? Aquele zumbido que Aninha respeitava, não chegando próximo por cautela?

E o canto do galo junto à cerca do vizinho? Altissonante, esbanjando charme, com aquela crista bem vermelha, não deixando dúvidas de quem era o mandachuva por ali? Parecido com alguns humanos. Aninha até lembrou-se daquela música chamada Bicho Gente, do CD Arca de Noé, de Kleiton e Kledir, que diz:

“Todo mundo é um pouco bicho, todo bicho é um pouco gente, tem olho, tem nariz, tem dente, tem pai e mãe e até parente, tem amor que nem a geeente!” 

E o que dizer da habilidade de andar de bicicleta de duas rodas pelo pátio, em meio a tudo isso?

E o jardim com rosas plantadas, que abrigava uma gruta com a imagem de Nossa Sra. Aparecida?

E a mãozinha que sentia a aspereza do salpique de cimento que revestia o poço?

E a figueira, que dava figo de verdade todos os anos, com um balanço bem ao lado que oferecia colo para Aninha, enquanto ela dava o seu para a boneca Mariazinha nanar bem devagarzinho?



Imagens, sons, cheiros, sensações: um universo real que se tornava lúdico a cada amanhecer.

Experiências que sedimentam lembranças, permitindo manter olhares sempre renovados sobre o que nos cerca. Tudo, a cada dia, será novo se o lúdico permanecer em nós. Ao que parece, a interação entre Aninha e todo o universo ao seu alcance continua capaz de fazê-la alçar voos para aquele outro, não visível, mas que a acompanha durante o sono daquela criança, que ainda persiste.

Emocionar-se com a melodia de uma sinfonia, ou com uma nuvem que desliza ao sabor do vento, é produto de sensibilidade despertada bem antes, ainda na época em que o olhar se detinha nas imagens oferecidas no seu entorno.

Neste conjunto de vivências, caberá aos pais fornecerem orientação sobre justiça, caráter, honestidade e demais valores necessários ao bem coletivo. 

Daí a importância de que às crianças sejam fornecidos meios e situações vivenciais que, juntos, formarão uma soma valiosa, capaz de propiciar elementos de qualidade para o futuro que a elas pertence.

A rua poderá tornar-se menos perigosa se conseguirmos buscar no lastro de qualidade, cultivado na infância, os passos corretos para encontros que valham a pena.

Quanto aos elementos modernos de comunicação, caberá, novamente, aos pais a dosagem adequada, pois a interação pessoa/pessoa deverá priorizar o diálogo à frieza e ao automatismo das máquinas. Ainda não se inventou nada melhor do que o homem. Devemos continuar apostando em seu potencial humano, para que se torne mais humanizado a cada dia.

Um Feliz Dia das Crianças para nós todos que ainda conseguimos manter um espírito brincalhão: apesar de tudo.



E, agora, um haicai pra Aninha comemorar este já tão distante O PÁTIO, guardado na lembrança, mas ainda presente no seu universo lúdico: como se fosse hoje.




Bicho Gente – Kleiton e Kledir





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Amelia Mari Passos: "Tornar o cotidiano lúdico é uma tarefa e tanto." Uau. Gostei. Conheci teu blog. Bravo!



quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O PLANO

Lá se vão os pezinhos sobre o cascalho. Logo, estarão ultrapassando o portão do pátio do avô. Soltaram o guri e lá se foi ele. O caminho já era conhecido. Lugar bom aquele! Lá era sempre recebido com abraços e guloseimas. Tomara que, no próximo domingo, pudesse voltar.

O pote com água adocicada está ali para atraí-lo. E ele vai se chegando, aos poucos. Brevemente, fará este trajeto todos os dias. Espera sempre encontrar aquele presente.

Pois, um novo professor chegou. E, desta vez, Marcelinho conseguiu entender a explicação sobre as orações coordenadas e subordinadas, matéria que jamais tinha aprendido. Que professor legal! Tomara que ele permaneça com a turma do Marcelinho por muito tempo.

Com o reforço que o time recebeu, seus integrantes acreditam que irão obter melhores resultados nos certames vindouros.

As muitas horas em que Marina debruçou-se sobre aqueles tantos livros e o seu visível esforço para vencer o exame que está por vir, dá-lhe a esperança de conquistar uma boa classificação naquele concurso tão concorrido.

Aquela palavra do médico, que José aguardava há tanto tempo, foi motivo de grande alegria. Esperara por longos meses, mas valera a pena.

A embalagem, pendurada no galho mais baixo da árvore, sinaliza que, como das vezes anteriores, hoje também terá um reforço ou, dependendo do dia, apenas essa sobra para alimentar-se. Mantém a esperança diária de ali encontrar o que os olhos, lá da esquina, antecipam e que irá acalmar aquela incômoda e constante carência. Poeticamente, a imagem comove. A realidade, mais ainda. O caminho para a solução desta necessidade não é, porém, o de apenas recolher o que se encontra à mão. O caminho é bem outro.

Em todas as situações descritas subjaz aquele desejo de que se cumpram nossas expectativas.

Claro que um olhar de esperança sobre o que nos cerca é alimentar a possibilidade de que os sonhos são possíveis de serem concretizados.

O plano é este. Mas não apenas este.

Caberá a quem detiver em mãos as rédeas do poder constituído fazer o dever de casa com competência e honradez. Criar uma política de inserção social, através do trabalho, de indivíduos plenamente capazes para o exercício de atividades produtivas as mais diversas: esta a meta principal.

Todo o sonho carece de ação para que se torne realidade. A força do trabalho é que dará esperança de melhores dias. Benesses não nos levam a lugar algum. Pelo contrário!

Estudo e trabalho são o binômio capaz de inserir os indivíduos num patamar digno de uma sociedade que se quer evoluída e democrática.

Como dizem os versos da poesia O SONHO E A ESPERANÇA, de Luiz Coronel, transcrita abaixo na íntegra, entre o sonho e a esperança existem sutis fronteiras. A esperança traz encomendas, enquanto o sonho indaga respostas. Então, a esperança monta o palco do espetáculo, afia as lanças, ilumina os edifícios e desperta os homens com seus clarins solidários.

A citação que abre o referido poema, na publicação original, é uma homenagem de Luiz Coronel ao poeta modernista norte-americano Wallace Stevens que escreveu:

“O sonho é a mente reagindo à pressão da realidade”.

O plano é reagir ao status quo, movido por sonhos carregados de esperança por dias melhores.

Perseverar nas melhores ideias frente às inúmeras existentes, mantendo-se aberto ao diálogo e ao caráter ecumênico das relações, também é desejável.

Como escreveu Mário Quintana em seu CADERNO H, recheado de epigramas, sobre as IDEIAS quintanou:

“Não sou desses que um dia pensam uma coisa e no outro dia pensam outra coisa muito diferente. Eu penso as duas coisas ao mesmo tempo. Duas ou mais. Não tenho culpa de ser ecumênico”.

Agora, segundo Quintana, o provérbio, que diz que a esperança é a última que morre, não está correto. Escreveu, na página 146 do seu CADERNO H, o seguinte:

“Não, o provérbio não está bem certo. O raio é que enquanto há esperança, há vida. Jamais foi encontrado no bolso de um suicida um bilhete de loteria que estivesse para correr no dia seguinte...” (A Esperança)

Portanto, o plano é manter a vida porque, em ela havendo, haverá esperança. Sem ela não restará esperança.

O plano é viver para assistir às mudanças sonhadas tornarem-se concretas, através de muito estudo, trabalho e de uma consciência cidadã.

Aliás, Martinho da Vila, no samba O PEQUENO BURGUÊS, seu primeiro sucesso nacional, descreve muito bem o que é necessário para se chegar à condição de um ser considerado privilegiado. Ao final do samba, afirma que quem quiser ser como ele, o protagonista da letra, terá que penar um bocado.

Com certeza, sacrifícios serão necessários. Dizem que aqui não se chega para passear. Ou melhor, também para passear quando as condições financeiras já permitirem.

É! O plano é desafiador!

Compensador, porém, para quem o enfrenta com as armas corretas, a saber: educação e trabalho.






O Pequeno Burguês - Martinho da Vila





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Amelia Mari Passos: "Maria Odila Menezes Soninha Athayde Obrigada pelas palavras. Soninha teu Blog é um show, olha o que hoje encontrei no teu escrito "O PLANO" 
“O sonho é a mente reagindo à pressão da realidade”. Wallace Steven"




quarta-feira, 24 de setembro de 2014

AS CAIXINHAS


Quando tia Ernestina aparecia com aquelas caixinhas, era uma festa. Aninha corria ao seu encontro no afã de abri-las.

Uma delas sempre continha sementinhas. A menina jurava que aquela goiabeira, que embelezava o pátio, era produto de algumas das tantas sementinhas. Também tinha uma pereira e um caquizeiro, tudo obra daquelas sementinhas tão aguardadas pela menininha.

Agora, tinham também outras caixinhas. Todas eram gratas surpresas. Nunca se sabia bem o que elas continham. Uma delas, por exemplo, de tempos em tempos, vinha com minúsculos pares de olhinhos, feitos com fios de lã. Estes podiam ser trocados por outros já colocados nas bonecas de pano, mas facilmente removíveis, para que os novos “olhinhos” assumissem o seu papel de renovação daquelas companheiras de brincadeiras.

Havia, também, a caixinha das pequeninas bolinhas de algodão, que eram guardadas para enfeitar a árvore de Natal, como se fossem flocos de neve nos moldes europeus, tão apreciada à época.

Outra caixinha aparecia, vez por outra, com florzinhas, habilmente confeccionadas pela tia, que serviam para lembrar quão bonita e alegre é a estação delas: a Primavera.

As tais caixinhas eram todas aparentemente iguais, mas escondiam surpresas. Todas, porém, agradáveis. Nada que, naquele tempo, tenha assustado Aninha.

Tinha aquela dos balões, todos coloridos.

Havia outra que continha inúmeras estrelinhas com uma lua e um sol misturados no meio delas.

Existiam duas outras caixinhas que iniciaram Aninha nas primeiras letras e números: um verdadeiro jogo de armar. O raciocínio ia sendo exercitado através de brincadeiras com a formação de palavras e com a junção de números para as primeiras continhas.

Outra caixinha muito aguardada era aquela em que, ao abri-la, saltavam carinhas de bichinhos, alguns domésticos, outros da selva distante. Todos, porém, amigos de quem se dispunha a vê-los como irmãos de brincadeira.

Um mundo encantado aquele das “caixinhas surpresa”.

Esperar pela chegada delas era sempre motivo de grande expectativa. Nem sempre continham novidades. Muitas vezes, repetiam-se. Eram, porém, repetições saudadas, pois guardavam lembranças queridas.

Tia Ernestina sabia “das coisas” do mundo.

Encantar-se era parte da vida de Aninha. E nisso, tia Ernestina colaborava como ninguém.

Daquelas sementes de goiabeira, pereira e caquizeiro nasceu um pé de cada árvore no quintal da casa. Nasceu, igualmente, o amor pelas árvores.

Do trabalho artesanal com fios de lã, nasceram não somente novos olhinhos para as bonecas, mas um olhar sempre disposto ao novo.

Do algodão ficou a imagem do inverno europeu, não nosso conhecido, porém reverenciado pela beleza plástica que encerra.

Das flores permaneceu o colírio que a cada Primavera nos invade o olhar. Imagens floridas que tornam nosso olhar mais brilhante.

Os balões ainda despertam Aninha quando ela os vê na mão de algum vendedor ou de uma criança. Dá vontade de alçar voo junto e descobrir o que existe no distante infinito. A curiosidade pelo desconhecido sempre é um desafio ao ser humano. E isso se completa com o olhar perdido em noite de estrelas e lua, tudo junto. E os sonhos tudo admitem. E é bom sonhar!



Como só de sonhos não se vive, permaneceram as letras e os números para, ambos, deixarem Aninha com os pés no chão. Ela confessa que preferiu as letras aos números. Claro que, sem eles, não se vive. Eles são, diria ela, decisivos numa disputa acirrada.

Quanto aos animais, tia Ernestina também soube, através da caixinha respectiva, demonstrar que eles são nossos companheiros nesta viagem. Alguns mais próximos de nós, outros nem tanto, mas não menos importantes.



Aninha acredita que tia Ernestina cumpriu com o seu papel. Afinal, ela era a sobrinha de que tanto gostava.

Alguns dirão que tia Ernestina falhou. Falhou? Em nada, ela falhou.

Foi excelente o seu desempenho em instigar a curiosidade, a expectativa e a descoberta do que continham as caixinhas. As surpresas eram sempre proveitosas, recheadas de ação, de emoção e de sensibilidade na medida certa. Tudo com frutos colhidos naquele presente e imaginados para um futuro que se anunciava.

Perguntarão alguns:

- E quanto às surpresas desagradáveis que não lhe foram ensinadas?

- Caberá à vida encarregar-se de oferecê-las, digo eu em favor de Aninha. 

O fato é que Aninha sabe como abrir as tais caixinhas surpresa. Já está treinada.

Quando tem certeza do seu conteúdo, numa rápida passada de mão.

Quando pairam dúvidas, com muita cautela.

Quem sabe, o sonoro canto de alguma ave possa ser decisivo neste momento de tantas dúvidas, de tantas indefinições. Afinal, a caixinha dos bichinhos pode ser inspiradora nesta hora.



Vivam as Árvores!

Viva a Primavera!

Vivam elas!







Agora, surpresa mesmo, em alto nível, foi a que tiveram os jogadores do principal time de basquete da Turquia, o Anadolu Efes, conforme mostra o vídeo que segue.

A música, que é tocada na surpresa, chama-se Senden Daha Güzel e representa o hino da torcida do time. Ela foi capaz de despertar os jogadores, já que alguns estavam visivelmente entediados com o espetáculo que acontecia.





Surpresa em um concerto de Música Clássica