quinta-feira, 14 de agosto de 2014

OLHARES RECLUSOS


Que tristeza um olhar que não se atreve a acompanhar o movimento contínuo das nuvens. Numa dança mais lenta ou num frenético bailado, é instigante acompanhar o vai e vem de tantas que povoam o céu de todos nós. E as estrelas? E a lua? Tudo ao dispor do nosso olhar desamedrontado. Um olhar que traça imagens e cenas, que cria histórias, as mais diversas, apenas pelo olhar voltado para o firmamento. 

Isto é contemplação!

Milhões de olhares, porém, não mais dispõem desta possibilidade. Embora a natureza ofereça gratuitamente esta dádiva, ela exige tempo. Mas, primordialmente, ela exige paz. E é disto que estamos a tratar. Paz para assistir a este espetáculo diário. Paz para desfrutar de um pôr do sol, de uma chuva mansa, ou mesmo de trovoadas ameaçadoras. Essas últimas, lembrando-nos apenas que são resmungos de quem se zangou e está a arrastar cadeiras no chão do céu.

De milhões de olhares, porém, foi sonegado este direito: o direito de encantar-se, de maravilhar-se com o espetáculo da mãe Natureza.

Os seus olhares procuram, ao contrário, desviar daquilo que lhes reserva o céu. Este passou a ser uma ameaça constante e implacável. O melhor a fazer é não olhar. É fechar o olhar ao belo e esgueirar-se por caminhos tortuosos, por túneis ou entre escombros. O olhar, pelo menos, estará a salvo de assistir a chegada da tragédia que vem pelo ar, já que o corpo aguarda o desfecho de mais um ataque.

Como se pode permanecer por tanto tempo sob tantas tragédias!

O que fazem os pacifistas?

Pela palavra e pela música tem-se tentado acordar a espécie, que se diz civilizada, para um novo momento de sua evolução.

Alguns desses pacifistas foram, momentaneamente, artífices de movimentos que mudaram sociedades retrógradas. Algumas conquistas. Poucas diante do tamanho do desafio e dos senhores que vivem das guerras.

Luiz Coronel, consagrado poeta gaúcho, patrono da 59ª Feira do Livro de Porto Alegre, ocorrida em 2012, em seu poema OS PACIFISTAS, transcrito, ao final da crônica, na íntegra, em sua 5ª estrofe escreveu:


De gravata ou turbante,
Os padeiros da morte
Sovam seus pães de pólvora.


Daniel Barenboim, famoso regente, argentino de nascimento e de origem judaica, criou, em 1999, a West-Eastern Divan Orchestra, juntamente com o intelectual palestino Edward Saïd, já falecido, e com Bernd Kauffmann, responsável pelo Festival das Artes de Weimar (Alemanha), justamente no ano em que a cidade foi escolhida como a Capital Europeia da Cultura. Esta orquestra é composta por jovens músicos do Médio Oriente, entre eles israelitas e palestinos. Também há iranianos, sírios, libaneses, jordanianos, egípcios e espanhóis. A orquestra tem sua base em Sevilha, na Espanha.

Sem nos atermos às declarações de Barenboim sobre o conflito entre israelenses e palestinos, vê-se com clareza o objetivo da orquestra: o de promover o diálogo e a paz entre judeus e não judeus do Oriente Médio.

O nome da orquestra foi inspirado na antologia de poemas de Johann Wolfgang von Goethe. Na conhecida composição lírica chamada West-Östlicher Divan, ou o Divã Ocidental-Oriental (1819), Goethe procurou conciliar a rica tradição poético-árabe com elementos subjetivos europeus da época. Segundo estudiosos, Goethe começou a estudar árabe quando já tinha 60 anos, tendo, ao longo de sua vida, sempre demonstrado interesse pelas culturas de outros países.

Embora tenha ocorrido um agravamento do conflito entre Israel e Palestina, os jovens músicos continuam a se reunir todos os anos em Sevilha. Cidade que sempre foi exemplo de convivência pacífica entre judeus, muçulmanos e cristãos.

Que belo exemplo! Que belo trabalho!

Sim, é possível unir diferentes povos pela música e, digo eu, pela palavra poética, não comprometida politicamente. Apenas comprometida com aquilo que expressa os amores, as dúvidas existenciais, as belezas postas a cada amanhecer, os sonhos projetados a cada entardecer, os propósitos e desafios que se deitam com cada um de nós. Tudo, enfim, que nos depure e nos aprimore como seres em constante evolução. A busca pela união entre os indivíduos, independentemente de etnias, crenças, culturas ou religiões, é o que deveria nortear os esforços dos povos que habitam este já tão pequeno Planeta.



Que tristeza um olhar que não se aventura, que não sonha, que está preso aos horrores da guerra.

Em algumas partes do mundo, o olhar não está mais solto. Tiraram-lhe a liberdade de vagar pelos céus, pela vastidão do universo. O seu alimento primordial, que são as imagens, estas lhe são servidas, a cada dia, mais sombrias, mais escuras, mais putrefatas, de difícil absorção, de impossível digestão.

Carlos Drummond de Andrade, nostalgicamente, escreveu LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO, cujos 8º, 9º e 10º versos dizem:

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.


O poema, na íntegra, transcrito abaixo, faz referência ao sentimento de insegurança trazido pelos tempos de guerra.

Sob o peso do iminente ataque que sobrevém a todo instante, o olhar pende para baixo. Perde-se ele por entre escombros, por entre corpos, por entre sonhos que recém desabrochavam. Nem mais os abrigos suportam tamanha tragédia.

Para tanto horror, criaram a trégua humanitária. Uma verdadeira falácia. É preciso que existam algumas horas de alívio, em que os ainda sobreviventes recebam alimentos para não morrer tão logo. É preciso ainda ter gente lá embaixo, para alimentar a sanha de quem não se cansa de matar.

Com tanto horror acontecendo, em tantos lugares ao mesmo tempo, acredito que a Superlua, espetáculo que a Natureza nos brinda de tempos em tempos, brilhou solitária no firmamento sobre aqueles distantes campos de guerra. Sem plateia, sem olhares a reverenciá-la. Olhares que se encontram reclusos no círculo de horrores que se instalou ao seu redor. Olhares que não mais ousam erguer-se. Pelo menos, por hora.

Quem sabe na próxima Superlua?





Poema OS PACIFISTAS de Luiz Coronel


Poema LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO de Carlos Drummond de Andrade


Música para a Paz 


9ª Sinfonia de Beethoven – 4º Movimento – Daniel Barenboim e West-Eastern Divan Orchestra

terça-feira, 5 de agosto de 2014

BENDITA SINERGIA!


O olhar, que se abre naquela gélida madrugada de tempos atrás, nada vê com clareza. Os sons, porém, já são audíveis. Alguns mais graves, outros menos. Sussurros, com certeza. Um bater de porta, talvez. O mundo chegara de mansinho. Ou foi o contrário?

O que se sabe é que, bem depois, detentora de uma privilegiada audição, ouvia o bater de uma folha seca, caída de uma árvore sobre um chão batido. Igualmente, as palavras já então incorporadas faziam coro com imagens e sons que, por vezes, amedrontavam.

O som do afiador de tesouras metia medo. 

Alguém, em algum momento, atrelara a figura do afiador a um ser que pegava as criancinhas. Que dano irreparável!

Mesmo assim, aquele era reconhecido como um som que iniciava uma melodia num tom mais baixo e que, no ar e ao longe, se perdia em uma nota bem mais aguda do que a primeira da série.

Os anos que se seguiram foram ricos em descobertas. O mundo das palavras, com seus sons e ritmos, acabou por casar-se com a música. Esta foi, considero eu, um elemento-chave na engrenagem que alimenta meu ser até hoje. 

O gosto pela palavra também crescia a cada dia.

Houve palavras que, quando lidas por mim, naquele exato momento, causaram-me um impacto tão grande que nunca mais me esqueci daquele instante. A palavra objeto desse encanto foi “paladino”. A frase era um título: O Paladino da Natureza. Quando busquei o seu significado, mais maravilhada fiquei ainda. Paladino era aquele bravo defensor, no caso, da Natureza. A força da palavra, o som que dela emanava era como a marselhesa para os ouvidos. Ou como o próprio Hino Nacional Brasileiro com toda a sua bravura em sua letra descrita. Esse gosto pela palavra ampliava o vocabulário, o que era perceptível quando da elaboração das redações escolares.

Eis que, de repente, ela chegou para ficar. Aquela que já fazia par sem ainda ter-se revelado por inteira.

O estudo da música abriu um universo de novas possibilidades, de novos sentires, de uma percepção de sons e ritmos que poderiam embalar versos ou até mesmo uma prosa poética.

O reencontro, este ano, com a Professora de Música, Nívea Rosa Thumé Karam, através do facebook, foi extremamente gratificante. A crônica A ELA, publicada em 20 de maio de 2014, demonstra a importância que tiveram elas, a música e a mestra, nesta jornada.

Participando em festas na escola, em eventos na paróquia que frequentava ou viajando pelo Atlântico através do alto-falante do navio Ary Parreiras, conforme relato feito na crônica SUAVE É A NOITE, publicada em 30/01/14, ela sempre esteve junto a mim. Em momentos também difíceis, lá estava ela. Sempre pronta para ajudar. Uma amigona!

Hoje, confesso que retorno com mais força a estes dois amores: a palavra e a música. Aqueles outros amores, que me acompanham, já foram revelados na crônica BEM-VINDO, AGOSTO! publicada em 05/08/13.

Estes são amores que se curtem quase sempre a sós. Nada exigem. Apenas esperam que aquele que deles precise os busque no momento de necessidade.

E o melhor de tudo é que a Internet abriu a possibilidade de podermos aliar o texto escrito à música, para emoldurá-lo.

Que melhor moldura para a palavra do que a música?

Atualmente, cultivo a palavra como nunca fizera antes. Da música, jamais me afastei. 

Esta sinergia vale ouro!

Neste dia 5 de agosto, bendigo esta dupla.


Desfrutada, é claro, ao lado de um companheiro inseparável: o chimarrão.





Poema A Palavra – de Pablo Neruda 



Poem Op. 41, nº 4 - Zdenek Fibich




Palavra Mágica - Carlos Drummond de Andrade








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Comentários via Facebook:



Maria Odila Menezes escreveu:
Parabéns Soninha!!! Mil curtidas para Bendita Sinergia!!!


Nívea Rosa Thumé Karam escreveu:
Soninha Athayde A música , uma afinidade que muito cedo nos aproximou . Lendo teus textos, senti que mesmo sem saber ,uma grande influência eu tive despertando em ti ,o gosto pela música Agradeço todas as belas referências e lembranças que guardas de mim,igualmente jamais esqueci aquela meiga menina dos olhos encantadoramente azuis.Um abraço querida.



sexta-feira, 25 de julho de 2014

A BOMBA



“A bomba abriu um belo buraco no teto, por onde o céu azul sorri para os sobreviventes.” 

Mário Quintana (Caderno H – p. 143)


Será este um pensamento poético sobre a dureza da guerra? Vamos adotá-lo como abertura para as tragédias diárias, que se sucedem nas guerras fratricidas mundo afora.

É difícil mantermos a esperança de que o céu ainda sorria após tanta atrocidade.

Talvez, apenas um poeta, como tempos atrás escrevi, possa:


...mergulhar o olhar no avesso do belo e ao final,

Com seu poetar,

Entregá-lo menos feio do que o original.

É pousar o olhar sobre este mundo

E devolvê-lo, em versos, mais iluminado e puro.



Torna-se, porém, cada dia mais difícil poetar.

Quintana já percebera isso quando escreveu o seu POEMA OUVINDO O NOTICIOSO.


Os acontecimentos tombam como moscas sobre a minha mesa:

z...z...z...z...z...z...z...z...

De junto a mim, 

- len-ta-men-te -

A Presença Invisível afasta-se

Deixando

Um rastro

De silêncio...

A página aguarda

O Poeta aguarda, mudo...

Em vão!

(O limite do poema é uma página em branco).

(Baú de Espantos, p. 92)



Cabe ao artífice da palavra, porém, como sempre fez ao longo dos séculos, perseverar na transposição de imagens e sensações para o universo escrito, poético ou não.

Há que se perceber o fato, mas não só ele.

Quintana assevera que “o fato é um aspecto secundário da realidade” (Caderno H, p.124). Devemos buscar a realidade, digo eu. Será isto possível?

O porquê dos olhos lacrimosos de Eunice? O poeta não saberá qual o motivo daquelas lágrimas. Construirá sobre elas um quadro cheio de sonoridades, ritmo, cor, talvez rima, para fixar o momento através da palavra escrita. Ele estará criando, neste instante, sobre uma realidade por ele imaginada. Uma realidade com cheiro de adivinhação. Isso dá ao poeta possibilidade de voos próprios de seu fazer literário.

Quando, porém, o olhar choroso é de uma criança em meio aos destroços de uma guerra insana, o fato não permite realidades imaginárias. A realidade está colada ao fato. Ao poeta caberá poetar sobre a realidade da guerra, por todos os aspectos, abominável. E todo o arsenal poético será trazido à tona sob a forma de figuras de linguagem e figuras de pensamento. Tudo para fazer menos dramático, se isso é possível, o olhar de desespero ou o rosto marcado pela tragédia da guerra. 

Porém, nem sempre acontece assim.

Quintana já alertava em O BERÇO E O TERREMOTO:

“Os versos, em geral, são versos de embalar, como eu às vezes os tenho feito, não sei se por simples complacência... ou pura piedade.

Contudo, os verdadeiros versos não são para embalar – mas para abalar. 

Mesmo a mais simples canção, quando a canta um Garcia Lorca, desperta-te a alma para um mundo de espanto”. 

(Caderno H, p. 125) 


Eu diria que os verdadeiros versos abalam sempre. Sejam eles cheios de lirismo ingênuo, quase infantil, pois esses calam fundo em quem os lê com a alma ainda de criança, que deve existir em cada um de nós. Ou, também, aqueles outros versos que fustigam os senhores das guerras. Senhores dissimulados em ideologias de todos os matizes, em fanatismo religioso, em etnias marcadas pela história dos tempos, em interesses econômicos devastadores ou até na pura ganância, própria do gênero humano.

Exemplos de versos tão abrangentes foram escritos por Carlos Drummond de Andrade que, usando da figura de repetição, que é a linguagem da emoção, reforça, pela reiteração, o horror da “bomba”. Uma ameaça latente que paira sobre todos nós. O poeta, hoje, provavelmente, acrescentaria mais algumas nacionalidades na enumeração que faz dos centros de poder.

Acredito, porém, que manteria os últimos versos desse famoso poema A BOMBA, transcrito abaixo. Tinha ele esperança de que o homem liquidaria com a bomba, não permitindo que houvesse a destruição da vida. Da vida no Planeta, acrescentaria eu.

Tal qual Vinícius de Moraes, que poetou sobre a devastação de cidades japonesas ao escrever A ROSA DE HIROSHIMA, poesia ao fim transcrita, que se tornou uma canção musicada por Gerson Conrad, também esta criação poética, que denunciou aquela tragédia atômica, abalou profundamente todos aqueles que a leram ou que a ouviram, já musicada.

Poesia, sim, serve para descrever o que de pior pode o ser humano criar: um artefato de extermínio em massa.

A Poesia nem sempre consegue, como afirmei inicialmente, devolver ao leitor uma visão bonita, iluminada, mais pura desse mundo.

Na maioria das vezes, faz-se necessário devolver a imagem em toda a sua monstruosidade, sem retoques, para que a poesia se afirme também como uma arte transformadora: com mais ou menos lirismo. Uma arte que denuncia, alerta, mas, sobretudo, aposta no ser humano como último guardião do Planeta.

O lirismo superou a realidade em A BOMBA de Quintana.

Nos dias atuais, precisamos de vozes capazes de nos fazer despertar, sem deixar que o sonho nos desabite.

Precisamos, como Quintana, enxergar um céu azul que sorri para quem ainda sobrevive em meio a tanta tragédia.



Receita perfeita para a paz dá-nos o reconhecido compositor gaúcho João Chagas Leite, em sua canção SEIVA DE VIDA E PAZ, quando seus últimos versos assim terminam:


Se os senhores da guerra

Mateassem ao pé do fogo,

Deixando o ódio pra trás,

Antes de lavar a erva, 

O mundo estaria em paz!






A Bomba - Carlos Drummond de Andrade



A Rosa de Hiroshima -Vinícius de Moraes


Seiva de Vida e Paz – João Chagas Leite (cantor)