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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

DIFÍCIL ACESSO... ao caminho das formiguinhas... ou a uma quinta lua...

Um dia, os olhos abriram-se. Quantas sensações foram-se somando! O tempo, figura despercebida, foi-se instalando a trotezito leve pelos dias e noites que se iam seguindo.

Os referenciais próximos eram todos seres iguais a si ou, pelo menos, tão vivos que mexiam o rabo, que balançavam ao vento, que cantavam ao longe, batendo as asas.

De vez em quando, uma chuva fina presenteava os olhos com aqueles pingos que escorriam pela vidraça. Por vezes, uma ventania derrubava alguns vasos mal colocados sobre a beirada de uma cerca. Também, às vezes, o frio mostrava a cara pela manhã, deixando suas marcas sobre o pátio em que havia uma pequena horta de verduras. 

À noite, tudo serenado, a lua surgia imponente, glamorosa, servindo, naquela época da infância, apenas como depositária de sonhos e perguntas ainda sem respostas.

Tudo se resumia a um pátio, a uma casa, bichos, pessoas e a mão caprichosa da Natureza: com suas alternâncias de luz e escuridão, de frio e calor, de secura e aguaceiro. Nada mais tranquilo do que o barulho da chuva fina sobre o telhado. 

Todos os ingredientes estavam ali presentes para as histórias que iam acontecendo ao natural.

Isso possibilitou que memórias fossem sendo armazenadas, sedimentando o chão de minha alma, palavras do escritor moçambicano Mia Couto, por mim tomadas de empréstimo.

Como relata o festejado escritor na Aula Magna, que abriu o 2º semestre do ano letivo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi de grande importância a casa em que viveu e, em especial, o chão de pedra da cozinha. Local por onde desfilavam as falas das mulheres, da família ou não, e onde fazia ele seus temas escolares. Também o convívio com o pai, durante as caminhadas pelos trilhos de uma via férrea, ensinou-lhe a relação com as coisas de menos valia material, mas de importantíssimo valor sentimental. Algo que dá uma dimensão da necessidade de se absorver um jeito vagaroso de existir, pois este enriquece a capacidade de observação. Momentos de extrema intimidade com as pessoas, as coisas e consigo próprio. Tudo de grande importância para quem viria a se tornar escritor por vocação, acredito eu. Mia Couto, de profissão biólogo, é, como tal, alguém dedicado a decifrar aspectos da natureza humana. 

Da rica palestra, que se encontra registrada abaixo, há inúmeras situações relatadas que nos dão uma visão mais detalhada das falas, das crenças, dos deuses e dos tempos da sociedade moçambicana.

A nós interessa, por ora, apenas os aspectos que se referem à importância das lembranças infantis ali descritas. Mais especificamente ao tempo e à intimidade, ambos desfrutados ao longo da infância, ao lado de referenciais humanos e da natureza.

A presença física, as vielas, as ruas, as praças, os lugares por onde se anda não podem desaparecer do contexto infantil. O registro de uma imagem, apenas, não é o bastante. O que importa é o registro mental daquela vivência. Esta é que perdurará. Temos que permanecer sendo autores de histórias vivenciadas e registradas em nossa memória. Elas, sim, dar-nos-ão suporte para o nosso equilíbrio psicossocial.

Mia Couto compara, a certa altura, o tempo atual como se fosse uma cobra em que lhe comeram a cabeça e lhe arrancaram a cauda. Ocorrendo tal amputação, resta-lhe o pescoço apenas. Portanto, sem cérebro e sem capacidade de movimento, pouco sobra para que haja opção de escolha ou de direção a seguir (interpretação minha). Muitos seres humanos, moldados nesta metáfora, se subordinam ao transitório que, por sua vez, já nasce morrendo. Temos, então, neste caso, o tempo do consumo que empobrece aquele que não cultiva o tempo necessário ao encantamento, à intimidade, ao prolongamento do sentir, do observar, do usufruir. Tempo, esse sim, rico de memórias e histórias para contar.

Voltando ao tempo das sensações infantis, como armazená-las se não temos tempo para tal, nem ambiente ou pessoas capazes de nos levar pela mão a nos mostrar tais maravilhas? 

Seguem, abaixo, pensamentos de Mário Quintana, extraídos do livro CADERNO H, que nos fazem atentar para a importância do sentir e do observar:




As cenas descritas pelo nosso poeta Quintana são fruto de momentos vividos e, posteriormente, revividos pela memória e lançados ao tempo que os imortalizou. É o que se pretende para cada um de nós: que nos imortalizemos pelas ações e criações que deixaremos como herança. Para isso precisamos do convívio com os nossos iguais e com os demais seres que habitam a natureza. Tudo dentro de um tempo pessoal e intransferível. Um tempo para observar aquela carreira de formiguinhas, levando cada uma a sua folhinha para um mesmo lugar que só a imaginação infantil poderá descrever. Um tempo para sentir, relacionar, criar e amar. Um tempo que sedimente nossas lembranças e nos faça autores de nossa trajetória. E não meros consumidores do agora que, logo ali, não mais existirá.

É! Está difícil o acesso da sensibilidade para o registro do perene. Apenas o transitório parece ter vez.

Tomara que tenhamos outros tantos escritores que busquem, como Mia Couto, nas histórias criadas, o desejo de manutenção de valores que perpassam pelo encantamento da infância e seu recriar: elementos imprescindíveis para uma evolução sadia desse antigo homem das cavernas.

Pois é! Pra quem, um dia, soube apreciar a Lua, tempos depois, saberá saudá-la. Verá uma lua que acende o céu com meia argola quebrada ou até descobrirá outra fase da lua, a quinta, que inspirou a música POEMA DA QUINTA LUA, letra de Sérgio Carvalho Pereira. Nela, o versejador ata a rédea na mirada da amada e neste olhar se acende a quinta lua, uma lua de amor.






Aula Magna ministrada por Mia Couto, escritor moçambicano, que  abriu o 2º semestre do ano letivo da UFRGS


Poema da Quinta Lua





quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ESTÁ MAIS DO QUE NA HORA


Para quem elegeu Deus como sendo gaúcho, maragato ou chimango, conforme diz a letra, a questão que rola por estes últimos dias não tem grande importância. A todos ELE abraça. 

E quem são os abraçados? 

Todos nós que ajudamos a construir este Estado. Independentemente de cores, raças, etnias, credos religiosos, tendências de quaisquer ideologias, todos portamos o mesmo código genético: o dos humanos. Daí nossa complexidade. 

As combinações genéticas perdem-se na poeira dos tempos. Fomos, com o passar dos séculos, nos aprimorando. Aprimorando? Ou será que somos ainda os mesmos homens primitivos que corriam pelas savanas? 

O fato é que quando estamos em manadas, tal como em antigas eras, adotamos um comportamento bem típico: aquele em que o transgressor, sentindo-se protegido pela multidão, dá vazão àquilo que os demais também estão a praticar. 

Gritar, em uníssono, palavrões para uma autoridade politicamente constituída, ou para um árbitro de futebol a todo o instante; fazer gestos obscenos quando se vê ultrapassado por um carro, ou, ainda, em plena rede social, para dar uma de “modinha”, convenhamos, é retroceder. Agindo assim, promovemos uma involução no movimento civilizatório que acompanha o ser humano há milênios. 

O refrão entoado a plenos pulmões não desperta sentimentos, mas sensações primitivas. E, na maioria das vezes, os indivíduos que habitam o planeta, principalmente em grandes aglomerações, são buscadores insaciáveis de sensações, destituídas de contemplação, mas predatórias e devoradoras. Veem no outro, principalmente quando em campos opostos, um constante opositor a quem fustigam para eliminá-lo, de qualquer forma. 

Michel Lacroix, filósofo francês, afirma que passamos por uma época de bulimia das sensações fortes. 

Refere, com propriedade, a diferença entre o grito e o suspiro. O primeiro, fruto de uma descarga brusca da emoção, uma verdadeira explosão. O segundo, resultado de uma emoção lírica, produto de uma interioridade tranquila, quase um recolhimento. A primeira manifestação dá-se num instante e sua duração esbarra numa sucessão rápida de outros tantos momentos. A segunda, perdura até que se transforme de emoção para sentimento. Esta última expressão, com certeza, não acontece num campo de futebol. Como num campo de batalha, em que a preocupação é a sobrevivência com a consequente eliminação do opositor, as arenas atuais têm-se tornado palco de demonstrações incontroláveis da chamada emoção-choque, aquela que coloca o corpo em ação em detrimento da emoção-contemplação que busca usufruir, conforme Lacroix, o sabor do mundo, aquele que se liga a um coração receptivo. 

Íamos a campos de futebol, tempos atrás, para ver o “time do coração” jogar. Uma coisa é assistir a um jogo e torcer. Manifestar-se de forma ofensiva, depredando, incendiando, ofendendo, aos berros, é outra coisa! 

A situação chegou a tal nível que surgiram as câmeras (coisas da modernidade), para que se registrassem e se adotassem medidas visando a coibir tais atos. 

Com certeza, no episódio tão momentoso quanto este do xingamento ao goleiro do Santos Futebol Clube, outras tantas ofensas, iguais àquela objeto da denúncia, devem ter ocorrido na mesma partida, por outros indivíduos que também lá se encontravam. Com relação a estes, as câmeras, ou não existiam nas proximidades, ou não registraram de forma cabal tais manifestações. 

Colocar mais câmeras seria a solução? 

Teríamos, dessa forma, mais denunciados? 

E quando a multidão ofende com palavras de baixo calão uma autoridade? 

E nos demais campos de futebol deste Estado e de outros não ocorrerão episódios idênticos? 

Medidas corretivas devem ser tomadas, com certeza. Não serão, porém, suficientes. A legislação já existe. Já há leis demais, para todos os gostos. 

Acredito que a Educação, num sentido amplo, nos forneça o caminho para a grande transformação que estamos todos a necessitar. Somente ela poderá promover a reinserção de tantos milhões de indivíduos num mundo mais aperfeiçoado, composto por elementos conscientes de sua importância na construção de uma nova civilização planetária: mais justa e fraterna. 

Segundo Luc Ferry, outro filósofo francês, em oposição ao chamado espírito limitado, o chamado pensamento alargado, que defende, é “aquele que consegue arrancar-se de si para se colocar no lugar de outrem, não somente para compreendê-lo, mas também para tentar, num momento em que se volta para si, olhar seus próprios juízos do ponto de vista que poderia ser o dos outros”. 

E continua: 

É o que exige a autorreflexão de que falávamos há pouco: para que se tome consciência de si, é preciso situar-se à distância de si mesmo. Onde o espírito limitado permanece envisgado em sua comunidade de origem a ponto de julgar que ela é a única possível ou, pelo menos, a única boa e legítima, o espírito alargado consegue, assumindo tanto quanto possível o ponto de vista de outrem, contemplar o mundo como espectador interessado e benevolente. Aceitando descentrar sua perspectiva inicial e arrancar-se ao círculo do egocentrismo, ele pode penetrar nos costumes e nos valores diferentes dos seus; em seguida, ao se voltar para si mesmo, tomar consciência de si de modo distanciado, menos dogmático, e com isso enriquecer suas próprias ideias. (livro APRENDER A VIVER – Filosofia para os Novos Tempos – p. 281/282) 



E uma Educação Humanista, fornecida desde os primeiros anos de escola, com ênfase nas diferenças existentes entre os seres humanos, dada a sua natural complexidade, deverá ser o caminho a seguir. 

Todos iguais, todos humanos, porém complexos. A tarefa é entendermos essa complexidade, respeitarmos as diferenças, acaso existentes, para atingirmos a sabedoria de que somos produto de uma origem comum e que, TODOS, por ELE somos abraçados, indistintamente. 



Pois é! O primeiro parágrafo, que iniciou esta reflexão, parece que não foi muito além da união, pela unção divina, entre Maragatos e Chimangos. Mas já é um começo! 

Quanto à moça e a expressão ofensiva, registrada pela câmera, servirão, ambas, para que se reflita sobre o que representa o outro, que nos parece tão diferente de nós, diante de nós mesmos. 

Somos iguais na complexidade. E estamos todos, sob o abrigo DELE, conforme já registrado. 

Temos que aprender esta lição. Está mais do que na hora. 




Fiquem, agora, com um vídeo que ilustra a negritude de que é composto o Brasil. Após, algumas curiosidades acerca do compositor de tantas melodias de sucesso no cancioneiro nacional, bem como do Hino do Grêmio Futebol Porto-Alegrense: Lupicínio Rodrigues. 

Aliás, a palavra grêmio vem do latim gremium que significa regaço, seio, colo. Nele, devem todos caber, como sempre couberam, a começar pelo negro, autor do seu hino, e de tantos outros atletas negros de reconhecidas qualidades.




Grandes personagens da história gremista (da esquerda para direita e de cima para baixo):
Lupicínio Rodrigues, Antunes, Paulo César Magalhães, Tarcísio, Dener, Émerson, Róger, Fernando, Tesourinha, Paulo Cézar Caju, Paulo Isidoro, Everaldo, Ronaldinho Gaúcho, Anderson, Zé Roberto.




Preto, Cor Preta - Jorge Aragão





Os Fagundes – Querência Amada






sexta-feira, 25 de julho de 2014

A BOMBA



“A bomba abriu um belo buraco no teto, por onde o céu azul sorri para os sobreviventes.” 

Mário Quintana (Caderno H – p. 143)


Será este um pensamento poético sobre a dureza da guerra? Vamos adotá-lo como abertura para as tragédias diárias, que se sucedem nas guerras fratricidas mundo afora.

É difícil mantermos a esperança de que o céu ainda sorria após tanta atrocidade.

Talvez, apenas um poeta, como tempos atrás escrevi, possa:


...mergulhar o olhar no avesso do belo e ao final,

Com seu poetar,

Entregá-lo menos feio do que o original.

É pousar o olhar sobre este mundo

E devolvê-lo, em versos, mais iluminado e puro.



Torna-se, porém, cada dia mais difícil poetar.

Quintana já percebera isso quando escreveu o seu POEMA OUVINDO O NOTICIOSO.


Os acontecimentos tombam como moscas sobre a minha mesa:

z...z...z...z...z...z...z...z...

De junto a mim, 

- len-ta-men-te -

A Presença Invisível afasta-se

Deixando

Um rastro

De silêncio...

A página aguarda

O Poeta aguarda, mudo...

Em vão!

(O limite do poema é uma página em branco).

(Baú de Espantos, p. 92)



Cabe ao artífice da palavra, porém, como sempre fez ao longo dos séculos, perseverar na transposição de imagens e sensações para o universo escrito, poético ou não.

Há que se perceber o fato, mas não só ele.

Quintana assevera que “o fato é um aspecto secundário da realidade” (Caderno H, p.124). Devemos buscar a realidade, digo eu. Será isto possível?

O porquê dos olhos lacrimosos de Eunice? O poeta não saberá qual o motivo daquelas lágrimas. Construirá sobre elas um quadro cheio de sonoridades, ritmo, cor, talvez rima, para fixar o momento através da palavra escrita. Ele estará criando, neste instante, sobre uma realidade por ele imaginada. Uma realidade com cheiro de adivinhação. Isso dá ao poeta possibilidade de voos próprios de seu fazer literário.

Quando, porém, o olhar choroso é de uma criança em meio aos destroços de uma guerra insana, o fato não permite realidades imaginárias. A realidade está colada ao fato. Ao poeta caberá poetar sobre a realidade da guerra, por todos os aspectos, abominável. E todo o arsenal poético será trazido à tona sob a forma de figuras de linguagem e figuras de pensamento. Tudo para fazer menos dramático, se isso é possível, o olhar de desespero ou o rosto marcado pela tragédia da guerra. 

Porém, nem sempre acontece assim.

Quintana já alertava em O BERÇO E O TERREMOTO:

“Os versos, em geral, são versos de embalar, como eu às vezes os tenho feito, não sei se por simples complacência... ou pura piedade.

Contudo, os verdadeiros versos não são para embalar – mas para abalar. 

Mesmo a mais simples canção, quando a canta um Garcia Lorca, desperta-te a alma para um mundo de espanto”. 

(Caderno H, p. 125) 


Eu diria que os verdadeiros versos abalam sempre. Sejam eles cheios de lirismo ingênuo, quase infantil, pois esses calam fundo em quem os lê com a alma ainda de criança, que deve existir em cada um de nós. Ou, também, aqueles outros versos que fustigam os senhores das guerras. Senhores dissimulados em ideologias de todos os matizes, em fanatismo religioso, em etnias marcadas pela história dos tempos, em interesses econômicos devastadores ou até na pura ganância, própria do gênero humano.

Exemplos de versos tão abrangentes foram escritos por Carlos Drummond de Andrade que, usando da figura de repetição, que é a linguagem da emoção, reforça, pela reiteração, o horror da “bomba”. Uma ameaça latente que paira sobre todos nós. O poeta, hoje, provavelmente, acrescentaria mais algumas nacionalidades na enumeração que faz dos centros de poder.

Acredito, porém, que manteria os últimos versos desse famoso poema A BOMBA, transcrito abaixo. Tinha ele esperança de que o homem liquidaria com a bomba, não permitindo que houvesse a destruição da vida. Da vida no Planeta, acrescentaria eu.

Tal qual Vinícius de Moraes, que poetou sobre a devastação de cidades japonesas ao escrever A ROSA DE HIROSHIMA, poesia ao fim transcrita, que se tornou uma canção musicada por Gerson Conrad, também esta criação poética, que denunciou aquela tragédia atômica, abalou profundamente todos aqueles que a leram ou que a ouviram, já musicada.

Poesia, sim, serve para descrever o que de pior pode o ser humano criar: um artefato de extermínio em massa.

A Poesia nem sempre consegue, como afirmei inicialmente, devolver ao leitor uma visão bonita, iluminada, mais pura desse mundo.

Na maioria das vezes, faz-se necessário devolver a imagem em toda a sua monstruosidade, sem retoques, para que a poesia se afirme também como uma arte transformadora: com mais ou menos lirismo. Uma arte que denuncia, alerta, mas, sobretudo, aposta no ser humano como último guardião do Planeta.

O lirismo superou a realidade em A BOMBA de Quintana.

Nos dias atuais, precisamos de vozes capazes de nos fazer despertar, sem deixar que o sonho nos desabite.

Precisamos, como Quintana, enxergar um céu azul que sorri para quem ainda sobrevive em meio a tanta tragédia.



Receita perfeita para a paz dá-nos o reconhecido compositor gaúcho João Chagas Leite, em sua canção SEIVA DE VIDA E PAZ, quando seus últimos versos assim terminam:


Se os senhores da guerra

Mateassem ao pé do fogo,

Deixando o ódio pra trás,

Antes de lavar a erva, 

O mundo estaria em paz!






A Bomba - Carlos Drummond de Andrade



A Rosa de Hiroshima -Vinícius de Moraes


Seiva de Vida e Paz – João Chagas Leite (cantor) 





segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

UMA PAUSA PARA O ENCANTAMENTO


Não importa se os dias são corridos, se acabo enxergando apenas semáforos, pedestres que se acotovelam pelas ruas, se espremem nos coletivos, ou se esbarram em shoppings e supermercados. Se pouco vejo os familiares ou se já nem os tenho mais.
Diante desse quadro, preciso, isso sim, é cultivar a emoção/contemplação, a emoção/sentimento. Aquela que foi a própria essência do estilo clássico. Aquela que abre passagem para a vida interior.
Michel Lacroix, filósofo e professor francês, autor do livro O Culto da Emoção,  discorre sobre os tipos de emoção existentes.
Classifica a emoção/choque como a que nos acompanha nos dias atuais. E ela apenas serve para nos chocar, sem nos dar nada em troca. Tampouco, torna-nos mais colaborativos. Apenas assistimos à miséria e ao extremo oposto como meros consumidores. Nossas sensações, nossas experiências excitantes, a partir dessas cenas, não têm um objetivo maior e principal. Por outro lado, a sensibilidade do sentir contemplativo exige muito mais. Exige tempo para que se transforme em um sentimento. Esse é um norte a alcançar.
E nós, seres humanos, somos seres com sentimentos. Nossas emoções originárias são fornecidas por situações reais que nos cercam.
Aquelas outras, modernamente criadas por técnicas em que o espetáculo é o choque, a perturbação, a perda de referenciais, não parecem levar o indivíduo a alcançar o nível de contemplação que o enriquecerá interiormente. Sem ter a percepção aguçada para o real que o circunda, tornar-se-á um mero consumidor de videogames, de músicas violentas, daqueles programas televisivos desprovidos de conteúdo, de filmes em 3D, de uma realidade virtual cujo cenário é prodigioso, mas onde a imaginação torna-se supérflua. Tudo muito atordoante.
E que futuros adultos estarão a formar-se?
Quem terá, daqui pra frente, sentidos tão aguçados a ponto de ouvir o barulho de folhas secas caírem sobre um chão compacto, de um pátio existente lá na distante infância?
E o cheiro de terra molhada prenunciando chuva próxima?
E o barulho das folhas ao vento?
E os olhos acompanhando o pisca-pisca das luzes enfeitando a árvore natalina?
E o Papai Noel que, diziam, chegava na calada da noite?
E os brinquedos?
Estavam sob a árvore na manhã seguinte.
Tudo como num passe de mágica.
Segundo Michel Lacroix:

“O eu não é rico por si mesmo, mas pelo que retira do mundo, por sua colheita emocional, sua disponibilidade ardorosa”.
“A verdadeira interioridade zomba da interioridade”.
E mais adiante:
“A vida interior requer a disponibilidade e a atenção para o mundo”.
“Precisa ser revitalizada pela exterioridade”.
“De certo modo, ela é o prolongamento dessas impressões, a condensação dessas emoções refinadas que continuam a ressoar em nós, depois de seu objeto haver desaparecido”.
Precisamos da realidade que nos cerca, porque o virtual é apenas um descolamento do sentir/contemplação para uma emoção que choca, constrange, amedronta ou excita. O essencial, porém, torna-se amorfo, sem uso, ensimesmado, incapacitado diante do outro e frente ao mundo. E o essencial é o sentimento/emoção, aquele que obtemos ao pousar os olhos em outro par de olhos, ao apreciar um pôr do sol, ao vivo e em cores, ao abraçar fisicamente, não virtualmente, um amigo, ao observar o pouso suave de um pássaro sobre a árvore da praça. Ainda, só para lembrar, como estamos tão próximos do Natal, é montar a árvore, embora já não um pinheiro verdadeiro, mas ainda tangível, que se pode tocar, aos moldes daquela que ainda povoa nossas lembranças.
A árvore virtual, tão moderna, sinceramente, não sei se as crianças lembrar-se-ão dela quando chegarem à velhice. E a vida interior, talvez, esteja mais pobre quando dela mais precisarem.
Por ora, usufruamos desse tempo de Natal para fazermos uma pausa. E com os olhos brilhando, continuemos nos encantando com lembranças tão gratas.
Pois, como afirma Lacroix:

“A alma não extrai nada de seu próprio fundo: é fabricada com belezas externas”.
“Longe de ser autossuficiente, é apenas a sombra projetada pelo mundo”.
“É uma lanterna mágica na qual se projetam as imagens externas, acompanhadas por suas vibrações emocionais”.
E o virtual, convenhamos, passa bem longe disso.
Esse é um campo que obscurece nossa sensibilidade, deixando-nos à mercê de uma emoção excitada, desvinculada do outro, integralmente artificial e egocêntrica.
E o Natal pede mais!
Agora, por outro lado, o mundo virtual do computador faz parte do nosso dia a dia. Se atividades forem bem conduzidas por pais e educadores e repassadas aos pequenos na hora exata, podemos, quem sabe, salvar a emoção/sentimento, entre tantas outras oferecidas. Talvez, consigamos livrá-los do pensamento massificado da grande manada.
Afinal, como diz Toquinho, na música Mundo da Criança, o mundo da criança é abençoado. E, talvez, estejamos vendo fantasmas onde não haja sequer mais indivíduos para assustarem-se com esses espectros. Pois nem mais saberão o que é um fantasma!
O Mundo da Criança – Toquinho
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Comentário via Facebook:
Maria Odila Menezes:
"Amigas! Não percam esta crônica! maravilhosa!!!!Parabéns, Soninha!"

sábado, 2 de novembro de 2013

UM DIA É POUCO













No poema AUSÊNCIA, que segue, Carlos Drummond de Andrade constata, finalmente, que “uma ausência assimilada” não é mais de nós tirada, “ninguém mais a rouba”, como ele diz.
 

 
Se assim é, ela torna-se presença constante. E não é o que acontece quando citamos frases, lembramo-nos de situações ou repetimos gestos de pessoas queridas que já se foram? E, às vezes, nem tão queridas assim?
Tudo o que passou e não deixou marcas, boas ou ruins, não fazem parte desse universo de recordações que nos acompanha por toda a vida.
De certa maneira, vamos sendo construídos, ao longo da existência, com a nossa presença viva, a dos que nos cercam e a daqueles que já se foram. Esses últimos constituindo uma presença constante pela ausência assimilada, que fica registrada em nós.
Portanto, Drummond dá-nos certo alívio porque conseguimos, assimilando a ausência, nos sentirmos permanentemente junto ao ausente. Essa sensação nos traz um convívio constante. Se tal recordação for negativa, teremos que trabalhá-la para que a transformemos em algo passível de perdão. Se, ao contrário, for positiva, resta desfrutar das gratas lembranças.
Assim, um dia apenas é pouco para lembrar-se dos que já se foram. Somente um dia para pranteá-los, como por aqui se faz? Ou dois, como no México, para comemorar com guloseimas, festas, máscaras, quase um carnaval de tanta alegria?
Na verdade, essa lembrança é constante. Como também o é a ideia da morte.
Mario Quintana, no poema PROJETO DE PREFÁCIO, atribui ao poeta uma missão. Vejam, abaixo, qual seria ela.
 


 
Mais adiante, Mario Quintana escreve MINHA MORTE NASCEU para o amigo Moysés Vellinho, quando se encontrava esse às portas da morte. Vejam:
 

 
Essa forma leve, terna, suave de dizer as coisas é que o fez um poeta maior: um poeta que sentia ao olhar. Grande observador da vida e dos seus convivas, certo dia, escreveu:
 

E, ainda:
 

 
Pensamentos leves, viagens transcendentais como essas visões do poema VIVER, dão-nos a certeza de que não podemos reverenciar ou festejar, como no México, apenas por um dia, alijando os nossos antepassados pelos outros 364 dias. Não!
Vamos trazê-los para o convívio diário. E não apenas nesse dia 2 de novembro.
Por que não? Afinal, quem nos garante que não caminhamos juntos?
Siga a letra de Noel Rosa no famoso samba FITA AMARELA, e não a deixe perder a cor.
Vamos trazê-los para a roda de samba, porque o bom é sambar.
E o choro?
Só o da flauta, do violão e do cavaquinho, como diz a letra do tal samba.
 
 
 
Orquestra Imperial – Fita Amarela
 
 
 
 
 

sábado, 12 de outubro de 2013

LEMBRANÇAS

Ainda ouço o leve estalar das folhas secas sobre o chão batido, quase um assoalho de tão liso. O verão escaldante servindo de fundo e as sensações pululando naquelas ondas de calor que subiam da terra. Este som é algo tão presente que ainda me transmite a sensação de absoluta unidade com aquele chão, com aquelas folhas a cair, com aquele momento, com aquele instante que ficou na saudade de dias em que o Universo estava todo ali. Era a alma infantil e aquele instante mágico. Ficava aguardando a próxima caída ao chão da folha ressequida: fim de uma vida para ela, desabrochar para mim de um tempo e espaço a descobrir. Em frente da casa, o pátio: um universo de descobertas, de sensações, onde o medo não disputava espaço com nada e com ninguém. Ele ainda não existia.
 
E o que era aquela pequena escada de oito degraus, disciplinadamente alcançada até o terceiro degrau, não mais, pois a mãe zelosa assim advertia? As fantasias iam além, mas o corpo pequenino ali estacava. Nem mais, nem menos. Aventurar-se, por instantes, em territórios desconhecidos, só em pensamento. O pescoço espichado, o olhar lançado, mas só até onde a vista alcançava: nem mais um milímetro. A imaginação, porém, compensava.
 
E o que dizer do balançar da cortina que dividia o quarto da sala? Ainda da cama, perceber pelo olhar o vulto rechonchudo de um bebê, fofinho, pés e mãos de massa, sentado em uma poltrona, presente de Papai Noel.
 
E o cheiro de terra molhada, prenunciando chuva próxima? Era a hora de carregar os brinquedos para um lugar seguro. Esse lugarzinho era embaixo da casa, onde minha mãe guardava o pote de manteiga no verão, para conservá-la mais fresquinha.
 
E o que dizer das hortênsias sob a janela do quarto e do banco de praça, ali postado, junto ao galpão, embaixo da parreira, bem perto do poço? Esse foi um dos objetos de minha infância. Sobre ele colocava filhos e filhas. Preparava o café da manhã, onde até o cheiro imaginário emoldurava o instante.
 
Um quintal cheio de sonhos, ainda adormecido para a realidade.
 
Uma infância atrelada à natureza, embora vivendo em uma cidade. E o que mais chamava minha atenção eram os sinais dela: os cheiros, os sons, as cores, a lua, o sol, as estrelas, a chuva, o vento e o navegar das nuvens.
 
Tempos depois, descobri com Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, na poesia DA MINHA ALDEIA, transcrita abaixo, esse olhar circunscrito a um pequeno lugar. E de lá, mesmo assim, capaz de perceber o quanto daqui “se pode ver no Universo”. E lembrei-me do meu Universo: o meu quintal.
 



 
Igualmente muito atenta, também, às conversas dos mais velhos e, especialmente, uma companheira de meu avô em suas investidas pela redondeza em conversas com os vizinhos.
 
Bons tempos aqueles! Serviram, com certeza, para moldar uma tendência de atenção com a natureza, com o entorno e, principalmente, com o outro. Uma criança que observava muito, que ouvia bastante e aprendia a se comunicar, tendo como espelho o próprio avô. E isso que era apenas uma vez ao ano, durante um mês, o contato com esse familiar.  A genética do avô materno, porém, já se vislumbrava de forma intensa.
 
Ah! Com ele também aprendi a gostar, desde tenra idade, de conhecidas óperas, interpretadas por cantores líricos italianos, conforme seleção constante da crônica CHAMA INTERIOR, publicada em 12/10/11, igualmente dedicada a ele. Destaco, por ora, novamente, a conhecida canção napolitana Santa Lucia, gravada por Beniamino Gigli, cantada por meu avô e que ainda soa em meus ouvidos.
 
Pena que nem todos os momentos, que se sucederam bem depois, foram tão cálidos ao coração e tão mágicos na sua essência. Aqueles primeiros, porém, com certeza, foram puros como a alma de uma criança e absolutamente reais para aquele ser, ainda anjo, perceber e inocentemente sorver, gota a gota, instante a instante.
 
O importante é que minha criança interior permaneceu, bem como o banco, ainda existente, na mesma residência, conforme foto abaixo. Apenas, agora, está em pleno jardim, soberano, único, parceiro e cúmplice dos sonhos que alimentaram essa então criança.
 
 


 
 
Hoje, estive lá para vê-lo, uma vez mais. E ele nem desconfia! Será?
 
Nesse dia 12 de outubro, portanto, dedico essa crônica a mim própria e ao meu modelo, até hoje presente em lembranças extremamente vívidas: meu avô Julio Noal.
 
 
E para que continuemos a desfrutar, ao longo da vida, de  momentos assim mágicos, embora o dia a dia seja, muitas vezes, bem menos leve e inspirador, sigamos o refrão da canção Par ou Ímpar, de kleiton e kledir, que diz:
 
“Não leve tudo isso tão a sério.
  
Enquanto o mundo gira, a gente brinca”.

E eu digo:
 
Não leve tudo isso tão a sério, porque, enquanto o mundo gira, a gente sonha. E essa também é uma forma de brincar.


 
 
 
 

Santa Lucia - Beniamino Gigli
 
 
 
Vídeo Kleiton e Kledir – Par ou Ímpar  
 
 
Da Minha Aldeia - Fernando Pessoa